“A NOSSA MISSÃO É SERVIR A HUMANIDADE E ALIVIAR O SOFRIMENTO”
Em entrevista exclusiva, o presidente da Cruz Vermelha Portuguesa revela como a sua experiência em gestão e diplomacia corporativa o preparou para liderar uma das maiores organizações humanitárias do país. António Saraiva destaca o compromisso com os princípios fundadores da Cruz Vermelha, a importância da sustentabilidade financeira e a inovação como pilares para enfrentar os desafios crescentes, garantindo assistência vital às populações mais vulneráveis e fortalecendo a resiliência comunitária.
Como é que surgiu o convite para ocupar o cargo de presidente da Cruz Vermelha Portuguesa?
Penso que o convite surgiu na sequência da minha experiência em gestão e diplomacia corporativa, assente num compromisso com a liderança e influência social, e pelos longos anos de envolvimento cívico, com uma abordagem humanista da sociedade.
A oportunidade de liderar uma organização com um impacto tão profundo na sociedade e o estímulo de guiar a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) para um futuro de contínuo impacto positivo e inovação no apoio humanitário representa para mim a convergência entre a minha experiência profissional e o meu desejo de contribuir para uma causa maior. Os desafios são imensos, mas igualmente gratificantes.
Que papel desempenha na liderança e governo da instituição?
Este cargo exige um compromisso com a missão nobre e os princípios fundadores da nossa instituição (humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência, voluntariado, unidade e universalidade), que servem como guia para todas as nossas ações e iniciativas. É essencial que todas as nossas ações sejam regidas por estes valores, garantindo que a nossa missão de oferecer assistência vital seja cumprida com dignidade e respeito. É necessária empatia e respeito absoluto pelos valores de cuidado e assistência.
Tenho também a responsabilidade de assegurar a sustentabilidade da organização, conciliando a ambição com a necessidade de perenidade, assegurando os recursos financeiros e humanos necessários para cumprir a nossa missão. Os mais vulneráveis são o foco da nossa ação.
É fundamental assegurar uma governança robusta trabalhando com todos, desde a direção nacional, às direções das 159 estruturas locais e organismos autónomos, aos delegados regionais, trabalhadores e voluntários. A liderança eficaz exige uma visão estratégica e a promoção da Unidade, um dos princípios fundamentais da Cruz Vermelha, que está na base da nossa existência e é o garante do nosso futuro comum.
A representação e advocacy são outra componente vital do meu papel. Promover as nossas causas e estabelecer parcerias estratégicas com outras organizações humanitárias, governos e entidades privadas é essencial para aumentar o impacto das nossas ações.
Por que princípios orientadores norteia a sua liderança?
Ao longo da minha trajetória no setor empresarial, pautei-me por uma visão humanista da sociedade e da economia. O desenvolvimento económico e o progresso tecnológico devem estar ao serviço do bem-estar social, promovendo uma sociedade mais justa e equitativa. O ser humano está no centro das nossas preocupações e ações.
A CVP deve garantir que todas as pessoas, especialmente as mais vulneráveis (como pessoas em situação de sem-abrigo, migrantes, refugiados e vítimas de violência doméstica) tenham acesso a serviços de saúde e assistência de qualidade e aos recursos necessários para viver com dignidade. Este compromisso com o humanismo implica olhar para além das obrigações legais e contribuir ativamente para o desenvolvimento das comunidades e da inclusão social.
Defini no início do mandato duas áreas que merecem atenção especial. Desenvolvemos iniciativas que promovem um envelhecimento saudável e ativo, além de garantir que os idosos recebem o apoio necessário para viver com dignidade e qualidade de vida. E tratar a saúde mental com a mesma prioridade e respeito que a saúde física, combatendo o estigma e garantindo acesso a tratamentos adequados.
É também fundamental investir continuamente na formação e capacitação dos nossos profissionais. O bem-estar emocional e psicológico dos nossos voluntários e funcionários é igualmente uma prioridade.
Como define a missão fundamental da Cruz Vermelha Portuguesa?
A CVP esforça-se para prevenir e aliviar o sofrimento humano, em Portugal e no mundo, prestando assistência humanitária e social, prevenindo e reparando o sofrimento e contribuindo para a defesa da vida, da saúde e da dignidade humana. Mobilizamos o “Poder da Humanidade”, bem como a generosidade dos doadores e parceiros.
Que desafios a Cruz Vermelha Portuguesa enfrenta atualmente, tanto a nível interno como externo?
Os desafios que enfrentamos são variados e refletem tanto as necessidades locais quanto as tendências globais. Uma preocupação premente é o crescimento da pobreza e da desigualdade social, fenómenos exacerbados por uma crise económica persistente. Com a desaceleração económica, o número de pedidos de apoio à CVP tem verificado um aumento significativo (no ano passado foram mais 73%), resultando numa pressão crescente sobre os nossos recursos e capacidade de resposta. São, por isso, necessárias estratégias sustentáveis, que possam mitigar as dificuldades imediatas e promover uma recuperação económica inclusiva e resiliente.
Outro desafio significativo é a sustentabilidade financeira, especialmente na mobilização de recursos para garantir que os nossos serviços possam continuar a ser oferecidos sem interrupção. É crucial fortalecer as parcerias com o Governo, empresas e outras organizações não-governamentais, além de investir na formação e no aumento do nosso voluntariado, que são essenciais para a expansão da nossa capacidade de intervenção. É também essencial melhorar a nossa capacidade de captação de recursos para garantir a sustentabilidade e a eficácia das nossas ações a longo prazo. Só desta forma conseguiremos manter a capacidade de resposta imediata em situações de crise e fortalecer a nossa posição como uma instituição resiliente e adaptável às mudanças do cenário global.
Como é que conseguem captar recursos e garantir a sustentabilidade financeira da organização?
Através de uma combinação de estratégias, como doações ou por meio de projetos financiados, que garantem a captação de recursos de forma eficaz e ética.
Primeiramente, a prestação de serviços é a nossa principal fonte de financiamento. Um exemplo bem-sucedido são os protocolos e parcerias com várias entidades públicas e privadas para a teleassistência que acompanha permanentemente diariamente pessoas em situação de dependência e solidão ou vítimas de violência doméstica. Em 2023, acompanhámos 10563 pessoas e fizemos mais de 356 mil chamadas.
Outro pilar importante é o desenvolvimento de campanhas de angariação de fundos, dirigidas ao público geral. Estas campanhas são fundamentais para envolver a comunidade e aumentar a nossa base de doadores. São disso exemplo as campanhas periódicas de recolha de vales em hipermercados de todo o país ou a consignação em sede de IRS que atualmente ainda decorre. Um gesto simples como assinalar o NIF da Cruz Vermelha (500745749) permite doar de modo gratuito e contribuir para os nossos inúmeros projetos no terreno.
Qualquer cidadão pode ser um doador regular, assumindo assim um compromisso duradouro com o nosso trabalho e garantindo o seu contributo no apoio às pessoas mais vulneráveis e à construção de percursos de vida dignos.
Também nos focamos na diversificação das nossas fontes de receita. Além das doações e subvenções, exploramos atividades geradoras de renda, como os cursos de formação em primeiros socorros e outras áreas relacionadas com a saúde e bem-estar. Promovemos assim também a educação e a prevenção na comunidade.
De que forma a organização garante a transparência nas suas operações e presta contas aos doadores e à comunidade em geral?
É nossa obrigação assegurar que cada euro doado seja usado da forma mais eficaz possível, em prol dos que mais necessitam. Fazemos, por isso, da transparência e da boa gestão um ponto fulcral da nossa relação com doadores e parceiros, comunicando regularmente sobre as nossas atividades e finanças, com os relatórios anuais, que estão disponíveis no nosso site. Os doadores recebem também relatórios de impacto e atualizações sobre os projetos em curso. Realizamos ainda reuniões periódicas e assembleias, onde discutimos abertamente as políticas, as práticas e os desafios da organização e promovemos um diálogo constante com as comunidades locais sobre as suas necessidades, de modo a ajustar nossas intervenções.
É possível destacar alguns dos projetos ou iniciativas mais significativos realizados pela organização recentemente?
A CVP destaca-se pela sua abordagem holística e focada na dignidade e autonomia de quem apoia. Além das respostas tipificadas, que desenvolvemos em todo o território nacional, destaco dois projetos que refletem o nosso compromisso com o desenvolvimento social e a luta contra a pobreza e exclusão social. O “Programa Mais Feliz”, que é um exemplo claro do compromisso da organização com o desenvolvimento social territorial. Através de intervenções focadas em cada pessoa, promovemos a autonomia dos mais vulneráveis, desenvolvendo suas competências pessoais e sociais.
O “Cartão Dá CVP” permite a aquisição dos bens de primeira necessidade que as famílias necessitam, reformula a forma como os apoios alimentares são concedidos, conferindo maior dignidade.
Além destes projetos, a CVP continua a trabalhar em várias frentes de ação social, da área de emergência, formação e saúde, mantendo sempre o foco em dignificar a ação e capacitar para a autonomia, reforçando a nossa abordagem abrangente e diversificada às problemáticas sociais.
Colaboram com outras instituições, tanto a nível nacional como internacional?
Colaboramos com organizações governamentais e não-governamentais para desenvolver e implementar programas que promovam a saúde e o bem-estar social e trabalhamos com organizações internacionais na advocacia por políticas que melhorem a resposta humanitária e na mobilização de recursos financeiros necessários à prossecução da nossa missão.
A nível nacional, a CVP é um agente de proteção civil e colabora frequentemente com o Governo e com organizações de saúde globais e locais, em projetos e respostas sociais e de emergência. Apoiamos centenas de milhares de pessoas na área de emergência, de saúde, formação e numa multiplicidade de respostas sociais – bens alimentares, pagamento de rendas de casa e contas básicas, acolhimento de pessoas em situação sem-abrigo e vítimas de violência doméstica, apoio à população sénior e em saúde mental. Através das parcerias com a AIMA, a Proteção Civil, a Segurança Social, a Comissão para a Igualdade de Género, em 2023 realizámos mais de 4500 transportes de pessoas refugiadas, em situação de emergência social, vítimas de violência doméstica.
Somos parte integrante do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, pelo que nos relacionamos com todos os seus organismos, fóruns e redes em domínios específicos. Esta vasta rede permite a aquisição de conhecimentos sobre as melhores práticas e inovações no campo humanitário e também uma colaboração eficaz e rápida entre as sociedades nacionais para assistência em grandes desastres ou crises internacionais humanitárias – como ocorreu, por exemplo, nos sismos da Turquia e da Síria.
Quais são as parcerias estratégicas mais importantes para a organização?
Estas parcerias estratégicas abrangem uma variedade de setores e todas elas são fundamentais para a realização dos nossos objetivos humanitários. Incluem colaborações com entidades governamentais, cruciais para garantir a eficácia da ajuda, conciliando e potenciando os recursos, reforçando e promovendo a dignidade e a autonomia das pessoas. As parcerias com organizações internacionais ampliam o alcance e a eficácia das operações além-fronteiras. A cooperação com empresas privadas é crucial para garantir recursos financeiros e técnicos necessários para a prossecução da missão da CVP. Igualmente importantes são as colaborações com outras entidades do setor social, que permitem a realização de programas conjuntos que maximizam os recursos e aumentam o impacto das iniciativas sociais.
A Cruz Vermelha valoriza também o envolvimento com instituições académicas e de pesquisa para fomentar inovações e melhores práticas no campo da ajuda humanitária e gestão de crises.
De que forma a Cruz Vermelha Portuguesa está preparada para responder a emergências e desastres naturais?
Através de uma abordagem abrangente e multifacetada. Estamos preparados para responder eficazmente a emergências e desastres naturais, mas também para minimizar o impacto desses eventos nas comunidades afetadas.
Dispomos de capacidade logística robusta (tendas, hospitais de campanha, alojamento de emergência, kits de higiene, equipamento médico), a nível local, regional e nacional, incluindo nas ilhas. Por esse motivo, conseguimos responder prontamente à necessidade de montagem de um Posto Médico Avançado em São Miguel após o incêndio no seu hospital. Possuímos ainda veículos de logística pesada e sistemas de comunicação avançados para garantir uma resposta rápida e eficaz.
Temos uma rede de voluntários e profissionais altamente qualificados nas áreas de socorrismo, medicina e técnicas de diagnóstico e terapêutica. Esta base de conhecimento especializado é fundamental. A capacidade de resposta rápida em emergências médicas é reforçada pela disponibilidade de ambulâncias.
Destacaria também a inovação na nossa abordagem, através da capacidade de utilizar veículos aéreos não tripulados (drones) para apoio em operações de busca e salvamento em coordenação com as entidades oficiais. Estamos também equipados para realizar resgates em condições desafiadoras, incluindo salvamento em altura e aquático.
Existem protocolos e recursos disponíveis para lidar com situações de crise?
A CVP é um agente de proteção civil, que trabalha em coordenação com os restantes organismos integrantes. Existe a possibilidade de ativação dos nossos meios de emergência médica através da sala de crise do INEM ou de meios de logística de emergência através das autoridades nacionais de proteção civil.
Como define os benefícios do voluntariado, tanto para os voluntários como para as comunidades visadas?
O voluntariado é uma força vital não só para a nossa organização, mas para a sociedade em geral. É um pilar para a sustentação e o fortalecimento do tecido social e da resiliência comunitária. Os voluntários são frequentemente motores de mudança, preenchendo lacunas que existem nas prestações de serviços e suporte social.
Defino o voluntariado como uma via de duplo sentido de benefícios, enriquecendo tanto aqueles que dão como aqueles que recebem. Proporciona uma sensação de propósito e satisfação pessoal, ao saber que as suas ações têm um impacto positivo direto na vida dos outros. Permite adquirir novas capacidades e ganhar experiência prática, em áreas como a liderança, a gestão de projetos e a resolução de conflitos, que são altamente valorizados no mercado de trabalho. No contexto social, o voluntariado fomenta conexões e um sentido de comunidade e pertença que transcende as atividades quotidianas. Isso é vital numa sociedade cada vez mais fragmentada.
Para além das ações de emergência, de que forma a organização contribui para melhorar o acesso aos serviços de saúde, especialmente no que diz respeito a populações mais vulneráveis?
Através de ações inclusivas, de que posso destacar alguns exemplos. Muito recentemente, a Coordenação Nacional de Emergência da CVP disponibilizou uma formação de língua gestual portuguesa para socorristas. As equipas de resposta de emergência são também sensibilizadas para o tratamento igualitário, inclusive nos grupos com vulnerabilidades acrescidas. Realizamos rastreios com equipas de proximidade que levam cuidados básicos de saúde até às comunidades mais remotas e isoladas. Temos acordos específicos para disponibilizar serviços de saúde mental a preços acessíveis ou gratuitamente através de programas.
Que desafios enfrentam nessa área?
A questão da sustentabilidade financeira e da necessidade de financiamento, que abordei anteriormente, também se coloca na emergência. Gostaríamos igualmente de conseguir abranger toda a comunidade de voluntários com ações de formação específicas, como o exemplo da língua gestual portuguesa. Existe aqui também o peso da imprevisibilidade das situações de catástrofe, que obrigam à prontidão constante das equipas.
Por outro lado, é também nossa preocupação garantir a equidade no acesso aos serviços a todos os territórios e comunidades.
Como é que a organização promove a resiliência comunitária e capacita as comunidades para se prepararem para emergências e desastres?
Com ações de formação a voluntários e agentes de proteção civil. As redes sociais e plataformas digitais são importantes para esta sensibilização. Temos previstas ações de capacitação de jovens nas escolas (através do Projeto PIA), que darão a conhecer o sistema de atuação da linha 112 e a execução do Suporte Básico de Vida.
Estamos também a implementar, em conjunto com a Federação Internacional e o apoio da União Europeia, um projeto de Primeiros Socorros Psicológicos, EU4Health. Trata-se de ações de formação e capacitação que visam preparar os profissionais que estão na linha da frente para identificarem e ajudarem as pessoas que se encontram em sofrimento emocional, ajudando-as a sentirem-se calmas e capazes de lidar com uma situação difícil.
Em que termos está a Cruz Vermelha Portuguesa a recorrer à inovação e à tecnologia para melhorar o seu impacto social?
Já fomos abordando alguns destes projetos nesta entrevista. A inovação é, de facto, essencial para respondermos aos desafios atuais. A teleassistência é disso exemplo. O recurso a drones para auxílio das entidades governamentais em situações de emergência onde existe difícil acesso. Em áreas remotas ou em situações onde os recursos médicos são limitados, utilizamos tecnologias de telemedicina para proporcionar consultas médicas a distância.
Noutras zonas do globo, a Cruz Vermelha lançou aplicações móveis que oferecem funcionalidades como primeiros socorros, preparação para desastres e rastreamento de desastres em tempo real.
Que marca quer deixar na Cruz Vermelha Portuguesa?
A minha aspiração é deixar uma marca de inovação e expansão no impacto humanitário que a nossa organização pode alcançar. Pretendo fortalecer a nossa capacidade de resposta em emergências e desastres em Portugal, aumentando a rapidez e eficiência com que mobilizamos recursos e assistência. Além disso, é fundamental aprofundar o nosso envolvimento com as comunidades locais, promovendo programas que abordem as necessidades mais urgentes, como a saúde, a educação e a inclusão social.
Estou também empenhado em promover a sustentabilidade da organização – garantindo assim a nossa capacidade de resposta para as solicitações que nos chegam diariamente – através da diversificação de fontes de financiamento e do reforço das parcerias com o setor privado e outras entidades não-governamentais.
Quero que a CVP seja vista não só como uma resposta em tempos de crise, mas como uma força permanente no desenvolvimento comunitário e no bem-estar social, sempre alinhada com os princípios fundamentais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. A nossa missão é servir a humanidade e aliviar o sofrimento, e desejo que esse legado seja robustecido e expandido durante o meu mandato.