“A REABILITAÇÃO É O INSTRUMENTO PARA O NOSSO GRANDE FIM: GARANTIR A TODOS O ACESSO À HABITAÇÃO”
Quando António Costa decidiu que a Habitação merecia ter estatuto de pasta ministerial, escolheu a arquiteta Ana Pinho para assumir a nova Secretaria de Estado da Habitação. Um desafio que foi acolhido com total entusiasmo e para o qual Ana Pinho fixou um objetivo: garantir a todos uma habitação adequada. Porque o direito à habitação, como lembra, é a base para qualquer pessoa poder aceder a todos os seus outros direitos: saúde, educação ou trabalho. Sem uma casa, todos os outros objetivos ficam condicionados. Desde 2017, quando assumiu funções, já colocou de pé a Nova Geração de Políticas de Habitação. Os programas multiplicam-se e os resultados começam a aparecer.
Qual o panorama, em termos habitacionais, em Portugal?
Em Portugal não temos um panorama único. Ao nível da habitação, a realidade não é simétrica em todo o território. Temos uma dinâmica muito acelerada, ultimamente, em mercados como Porto, Lisboa ou Algarve. Mas o resto do país não acompanha esta dinâmica, nem para o bem, nem para o mal. Não temos uma assimetria dos preços face aos rendimentos tão alta, e a dificuldade de acesso à habitação não é tão forte como nestas regiões de maior pressão de mercado. Mas, por outro lado, as dinâmicas de reabilitação, de investimento em habitação, também são mais baixas. Ou seja, neste momento em Portugal temos uma realidade assimétrica, mas há alguns traços preocupantes que atravessam o país. O levantamento nacional que fizemos das necessidades de realojamento habitacional demonstrou que temos 26 mil famílias em situação habitacional indigna. Destas, sabemos que a larga maioria se localiza ainda nas áreas metropolitanas. Mas isto é o aspeto quantitativo dos números absolutos. Em termos de carências habitacionais no território, temos territórios do interior em que, embora o número de famílias em situação de grave carência habitacional seja muito mais pequeno, pode ser significativo numa determinada área: temos, por exemplo, um município onde perto de 70% das crianças no pré-escolar não tem uma habitação adequada. O impacto de uma situação deste tipo no futuro de um município é muito pesado. Depois temos também carências ao nível da classe média, essas mais agudizadas nas zonas de maior pressão urbanística. A realidade, sendo diferente, não deixa de ser preocupante, daí termos criado instrumentos flexíveis, com capacidade de serem adaptados às realidades locais, para poderem dar uma resposta à medida dos problemas que cada uma das zonas enfrenta.
Desde que assumiu funções como secretária de Estado da Habitação que é esperado um programa de resposta às carências habitacionais do país. Quais as principais alterações que destaca?
Desde que houve a criação da Secretaria de Estado da Habitação até à criação do programa para dar resposta às carências mais graves do país, mediou menos de um ano. O programa foi aprovado em Conselho de Ministros em 26 de abril de 2018, publicado em Diário da República em julho e plenamente regulamentado no início de agosto. Está, neste momento, em fase de operacionalização. É o 1.º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, um programa cuja previsão de dotação tem por base o levantamento que referi anteriormente: as cerca de 26 mil famílias. Estima-se que seja necessário um investimento de 1700 milhões de euros (700 milhões a fundo perdido) para dar resposta a todos estes casos e chegar aos 50 anos do 25 de Abril sem famílias em situação de indignidade habitacional.
Como é que as medidas implementadas, no que ao arrendamento diz respeito, vão permitir ao Estado controlar o mercado de habitação?
Ao nível do mercado de arrendamento, atuámos em várias frentes. A primeira foi a constatação de que não existia em Portugal informação rigorosa e oficial sobre os valores de mercado de habitação. Só há pouco mais de um ano é que começámos a ter valores do INE com os preços por metro quadrado de venda e de arrendamento territorializados, ou seja, passámos a dispor de informação estatística relevante à escala territorial mais pequena. Esta é uma primeira medida de base, mas fundamental, porque sem haver conhecimento do que está a acontecer ao nível dos preços tínhamos em Portugal uma grande dificuldade de monitorização fiável. As próprias famílias tinham dificuldade em saber ao certo quais eram os preços que estavam a ser praticados, também porque os pedidos e os praticados não são sempre os mesmos. Depois foi aberta uma frente muito importante de forte promoção de mais oferta pública, feita por dois grandes programas: o 1.º Direito, onde a larga maioria das soluções habitacionais a apoiar passará por arrendamento, e o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, que mobiliza o património devoluto e disponível do Estado, das autarquias e das IPSS, para a sua reabilitação e colocação no mercado de arrendamento habitacional a custos acessíveis. Paralelamente, como partimos de um ponto em que o parque público é só de 2%, para conseguirmos chegar à nossa meta de 5%, estamos a falar de mais 170 mil fogos, precisávamos de ter uma atuação que viesse complementar a promoção de mais oferta pública e que pudesse trazer maior amplitude e celeridade ao processo.
Como?
Complementámos os instrumentos de promoção de oferta pública com incentivos para a disponibilização no âmbito do parque privado de habitação para arrendamento a custos acessíveis, através do Programa de Arrendamento Acessível, aprovado em Conselho de Ministros a 14 de fevereiro.
Este é um programa que prevê a isenção da tributação sobre os rendimentos prediais das habitações que forem arrendadas no âmbito do mesmo. Estamos a falar de isenção de IRS e IRC sobre os rendimentos destes alojamentos. Para aderir a este programa os proprietários terão que respeitar um limite máximo do preço de renda, limite este que é calculado com base no preço de referência de arrendamento para a área de localização da habitação. Ou seja, tem em conta a mediana do preço de renda para a zona da habitação, os metros quadrados da mesma, as suas características – se tem estacionamento, se está em bom estado de conservação, se está num 4.º andar sem elevador ou, pelo contrário, está acessível, entre outras. Todos estes aspetos são tidos em conta no cálculo do valor de referência de arrendamento, e as rendas praticadas no Programa de Arrendamento Acessível têm de ser pelo menos 20% abaixo desse valor. Para além da isenção de tributação sobre os rendimentos prediais, os proprietários gozam ainda de uma redução do risco, mediante um conjunto de disposições do programa nesse sentido e do acesso a um conjunto de seguros de arrendamento. Isto fará com que, complementarmente ao esforço do Estado, possam haver senhorios privados também a disponibilizar habitações para arrendamento acessível. Adicionalmente, foram ainda reforçados os instrumentos de apoio à promoção de mais oferta a custos acessíveis. Foi atualizada a Portaria n.º 500/97, com mais de 20 anos, que estabelecia os conceitos e os parâmetros de área, custo de construção e valor máximos de venda a que as Habitações a Custos Controlados (HCC) estão sujeitas, e a cuja promoção se aplica uma taxa de IVA de 6%. Esta iniciativa veio permitir que não só pudessem voltar a ser promovidas habitações certificadas como HCC mediante a atualização dos seus parâmetros, como alargou o âmbito à reabilitação e definiu limites de preço para arrendamento além da venda, sendo um claro incentivo ao aumento de oferta habitacional a preços acessíveis.
Paralelamente, existe também um conjunto de instrumentos de financiamento às próprias obras de reabilitação como o IFRRU 2020 [Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas] ou o Reabilitar para Arrendar.
Estando em vigor instrumentos de incentivo tanto para disponibilização de oferta habitacional como para as obras de reabilitação, considera-se que não há razão para que, em particular, nas zonas de pressão urbanística, continue a haver imóveis devolutos. A não disponibilização de oferta de imóveis, sobretudo nas zonas do país onde se verifica maior dificuldade de acesso à habitação, é uma prática lesiva do interesse público e que tem por efeito e consequência uma redução injustificada da oferta habitacional, bem como, por essa mesma via, uma subida artificial dos preços. Assim, foi já também aprovado o diploma que dá a possibilidade aos municípios de agravarem significativamente a taxa de IMI já existente para os imóveis devolutos localizados em zonas de pressão urbanística, o que concorrerá para a disponibilização de mais oferta e para a descida de preços.
Cobrimos todas as áreas, desde a promoção pública à fiscalidade e aos instrumentos de financiamento para que, de facto, possamos ter uma oferta alargada de habitação para arrendamento a custos mais baixos, o que obviamente influenciará o mercado.
Em termos de reabilitação urbana, qual era a sua meta para este mandato? Vai conseguir cumprir esse objetivo?
A Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) tem dois grandes pilares: garantir a todos o acesso a uma habitação adequada e tornar a reabilitação a forma de intervenção predominante, tanto ao nível do edificado, como ao nível do espaço urbano.
Claro que isto não se consegue em dois anos. O que foi definido para esta legislatura foi criar condições, não só do ponto de vista fiscal e dos instrumentos financeiros, mas também legal e regulamentar, para que tal possa acontecer. Do ponto de vista fiscal, alargaram-se os incentivos às obras de reabilitação de imóveis com mais de 30 anos, com melhoria comprovada do estado de conservação da habitação, onde quer que se localizem.
O âmbito do IFRRU, que é um instrumento financeiro de apoio à reabilitação urbana, foi alargado, passando a obras de reabilitação em habitações na totalidade das Áreas de Reabilitação Urbana (ARU). Foi também criado o Casa Eficiente, outro instrumento de apoio à reabilitação, que cobre as obras com melhoria da sustentabilidade ambiental. Neste caso as obras não precisam de ser ao nível do edifício, podendo financiar-se somente frações e partes comuns. Estamos também a renegociar o programa Reabilitar para Arrendar, tornando-o mais atrativo e com melhores condições.
Paralelamente, está em fase de conclusão o Projeto Reabilitar como Regra. Durante anos tivemos toda a legislação da construção orientada para a construção nova. Em anos recentes criou-se o regime excecional de reabilitação do edificado, que é excecional e temporário, e em que as incompatibilidades da legislação de construção com a da reabilitação são resolvidas, genericamente, por via da dispensa do cumprimento, o que em alguns casos não assegura a segurança e as condições mínimas de habitabilidade dos imóveis.
Ora, se queremos que a reabilitação passe a regra, ela tem de ser tratada correntemente na legislação da construção e não ter um regime excecional e temporário. Assim, o objetivo do projeto é diagnosticar os obstáculos à reabilitação no âmbito das normas técnicas da construção e propor as alterações legislativas necessárias. A nossa intenção é, até ao fim da legislatura, poder revogar o regime excecional de reabilitação do edificado, tendo o quadro legal plenamente adequado às especificidades da reabilitação, eliminando os obstáculos à mesma, mas, simultaneamente, dando garantias de segurança e de condições de salubridade e habitabilidade para as pessoas.
Qual é a prioridade? As pessoas ou a reabilitação dos edifícios devolutos?
A questão não se coloca assim. O direito à habitação é um objetivo último, constitucionalmente consagrado. A reabilitação não é um objetivo por si, é um instrumento. Nesta altura, é aquele que consideramos o mais adequado e necessário para o país. Anos antes não era, porque a habitação não chegava. Neste momento, há alguma escassez em sítios muito cirúrgicos, mas na larga maioria do país temos um parque habitacional muito alargado. Somos dos países da Europa com mais habitações por habitante. Em simultâneo, somos um país que não tem uma área territorial muito grande, portanto, temos que ter um desenvolvimento sustentável, um bom ordenamento do território.
Mais construção na larga maioria do território implicaria mais habitações vagas. A reabilitação é, assim, um instrumento privilegiado tanto para os objetivos da política de habitação, do ponto de vista do desenvolvimento territorial e da da sustentabilidade ambiental e material, como de aproveitamento dos recursos instalados. Por essa razão, a reabilitação é o instrumento mais promovido em todos os instrumentos de política de habitação. Ou seja, nos programas de apoio à habitação para os mais carenciados, a majoração é maior se for reabilitação; o que o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado mobiliza são os imóveis públicos devolutos para os reabilitar; os instrumentos de financiamento existentes são todos para a reabilitação e parte dos incentivos fiscais também se aplica só à reabilitação.
A reabilitação é, neste contexto, o instrumento privilegiado para o nosso grande fim: garantir a todos o acesso à habitação.
Como descreve os programas 1.º Direito e Porta de Entrada?
Ambos visam dar resposta a carências graves. Mas têm uma diferença estrutural: o 1.º Direito visa dar resposta a situações de grave carência habitacional, famílias com recursos financeiros muito baixos, que não têm alternativas e que precisam de um apoio público forte para ter uma habitação. Chama-se 1.º Direito porque se não tivermos direito à habitação, todos os outros direitos ficam em risco: o direito à educação, à saúde, ao trabalho. Todos são dificilmente alcançados se não se tiver casa.
O Porta de Entrada é um programa que visa dar resposta a carências habitacionais que não derivem de uma dificuldade estrutural da família, mas de um acontecimento inesperado, como uma catástrofe natural ou em casos como os incêndios de Monchique ou o apoio aos lusodescendentes que estão a sair da Venezuela e a regressar ao território da Madeira. É mobilizado para situações em que as pessoas se veem privadas de habitação não por razões de problemas estruturais da família, mas porque algo de inesperado aconteceu, em que é preciso dar apoio urgente.
Na sua opinião, o alojamento local é um benefício ou, pelo contrário, uma tendência que deve ser travada?
Tal como no panorama habitacional, o alojamento local tem uma expressão territorial diferente nas várias áreas do nosso país. Se por um lado parece estar a haver em alguns territórios – normalmente coincidentes com zonas de maior pressão urbanística e nas áreas mais centrais de algumas cidades portuguesas – um desequilíbrio na oferta habitacional, agora a competir com um novo uso do mesmo espaço, que torna mais difícil o acesso à habitação porque reduz a oferta e faz subir os preços, por outro lado temos áreas muito consideráveis do país em que o problema é a falta de atividade económica, até para poder fixar as famílias e gerar rendimentos para que estas possam ter acesso à habitação. Nestes casos, um aumento de atividade turística poderá facilitar tanto o acesso à habitação dessas famílias, como a fixação da população em zonas do interior e despovoadas.
Tal como noutros fenómenos a que assistimos, como a terciarização dos centros históricos na década de 1970 ou 1980 nas cidades europeias, é ao nível local, através dos instrumentos de gestão territorial e regulamentação municipal, que estes fenómenos foram sendo controlados, porque adequamos a promoção ou a contenção às especificidades das dinâmicas do terreno. Eu acho que o alojamento local deve ter um tratamento semelhante. Foi o que foi aprovado na Assembleia da República no ano passado.
Como funciona o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE)?
O FNRE é outro grande programa para aumento de oferta pública de habitação. Neste caso, não é orientada para as famílias com carências mais graves, mas para aquelas famílias de rendimentos intermédios, que, dada a situação do mercado, só com um forte esforço orçamental é que conseguem ter acesso a uma habitação adequada. Para esse fim considerou-se importante haver também uma oferta pública que não existiu até hoje. Por isso, foi criado este fundo, que recebe imóveis devolutos e a necessitar de obras, neste momento só do Estado ou de instituições do terceiro setor. O objetivo é promover as obras de reabilitação desses mesmos edifícios e disponibilizar oferta pública no mercado de habitação para arrendamento a custos acessíveis.
Cada subfundo é composto por imóveis e capital: o Estado, autarquias e terceiro setor entram com património imobiliário e o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social entra com 30% do valor do subfundo em capital. Para as entidades detentoras dos imóveis, tem a vantagem de não precisarem de gastar recursos próprios ou de se endividarem para a sua reabilitação e para a disponibilização de oferta habitacional a custos acessíveis. Dada a natureza do investidor financeiro, as operações do FNRE têm de ter sempre viabilidade económica, estimando-se cerca de 4% de rendibilidade mínima.
E o IFRRU 2020?
O IFRRU 2020 é diferente. Está disponível nas Áreas de Reabilitação Urbana, e nas áreas de intervenção das comunidades desfavorecidas que os municípios tenham definido no âmbito dos programas comunitários. Concede empréstimos em condições mais favoráveis do que as do mercado para obras de reabilitação, podendo estes edifícios ter várias funções. Não se destina em exclusivo a edifícios de habitação, porque é um instrumento orientado para a regeneração urbana. Mas para aceder a este financiamento, a intervenção no imóvel precisa de estar de acordo com a estratégia municipal de reabilitação e regeneração da ARU.
Assistimos a uma grande procura de casas antigas por parte de investidores estrangeiros. Não corremos o risco de estas habitações passarem a fazer parte do mercado de luxo e serem vendidas a estrangeiros com preços que os nacionais nunca vão poder pagar?
Risco, existe sempre. Não há nada, nem pode haver, no âmbito da União Europeia, que proíba a venda a cidadãos de outros países…
O que se pode fazer para travar preços?
O instrumento mais adequado para travar preços é o que referi ao início: uma intervenção grande no mercado começa por informação, mais oferta pública a preços mais baixos, mais oferta privada a preços mais baixos e mais oferta por via da penalização dos devolutos nas zonas de forte pressão urbanística, porque esses também estão a reduzir a oferta disponível e isso faz aumentar artificialmente os preços. A grande aposta para travar preços está exatamente na promoção de uma oferta alargada e consistente, a preços mais reduzidos.
Aqui, estamos a falar de uma construção específica, que são os palacetes, que o Estado devia recuperar e não o faz.
O que é o património público do Estado e dos municípios tem agora um instrumento para ser mobilizado também para arrendamento a custos acessíveis, que é o FNRE. Agora, se me pergunta se é uma boa utilização de dinheiro público – havendo património público para ser reabilitado e havendo necessidades de apoio para habitação para as famílias carenciadas – ir comprar a preços de mercado palacetes nos centros das cidades, eu digo-lhe que não. Tal só contribuiria ainda mais para a especulação. Neste momento, é muito melhor utilização do erário público recuperar os recursos que já temos e torná-los disponíveis, apoiar a promoção de habitação de interesse social e, pela via fiscal, conseguir-se mais oferta acessível também em património privado.
Bruxelas fez, recentemente, um aviso sobre o aumento do valor das casas em Portugal. Não teme que o setor habitacional seja propenso à formação de bolhas que poderão, eventualmente, conduzir a problemas no pagamento das hipotecas?
Do ponto de vista da política de habitação, a preocupação radica-se essencialmente em duas questões: primeiro, o aumento de preços reduz o acesso à habitação. Como os preços estão a aumentar, aumentam as famílias com dificuldade para aceder à habitação. A segunda questão liga-se com a compra de casa. Os dados mostram-nos que as principais razões de incumprimento de crédito não são a quebra de rendimentos, mas os divórcios.
Temos um mercado de arrendamento que nunca evoluiu muito. A alternativa à compra de casa própria foi sempre mais reduzida do que na maioria dos países europeus. E estamos num mundo em que tanto por via profissional, como do próprio percurso familiar, está tudo muito mais dinâmico. Hoje em dia as pessoas movem-se. Esta mobilidade e o regime ocupante-proprietário não se coadunam. Esta é uma das razões pelas quais não só os novos instrumentos apostam no incentivo a um alargamento do mercado de arrendamento, como esteve na base da aprovação e recente colocação em consulta pública de uma alternativa à compra de casa: o novo Direito Real de Habitação Duradoura (DHD), onde tentamos conciliar duas coisas aparentemente inconciliáveis: a necessidade de mobilidade com a necessidade de estabilidade familiar.
Para quem já alcançou a idade de reforma e tiver comprado uma habitação no sítio onde desenvolveu atividade, mas agora quer voltar às suas origens, tem logo um problema: ou a venda da casa dá para comprar outra, ou se quiser pedir empréstimo ao banco já terá dificuldade com a idade avançada. Pode também ter investido todo o seu esforço de vida na aquisição da sua casa, e agora tem uma vida muito modesta ou precisa de grande controlo porque o seu património está ali.
Ou nem aguenta o que já aguentou no passado?
Pode haver muitas situações, mas há um outro lado: o facto de já estar numa idade em que precisa de saber que, onde quer que for residir, será onde poderá ficar até aos seus últimos dias. Este é um cenário onde o DHD pode ser muito interessante. A ideia é pagar uma caução ao proprietário, entre 10 e 20% do valor da casa, e depois uma prestação mensal que acordam. E tem o pleno usufruto da habitação até ao dia da sua morte. Se este direito cessar nos primeiros 10 anos – em que o proprietário não pode quebrar o contrato, mas o morador pode rescindir –, a caução é totalmente devolvida. A partir daí o proprietário já fica com 5% ao ano da caução, sendo que aos 30 anos obtém a totalidade.
O que é que isto permite? Que o morador possa sair a qualquer momento, e se tiver que contrair um empréstimo, só terá de o fazer no valor da caução. E como vai abatendo o empréstimo, se sair nos primeiros 10 anos ainda sai com dinheiro. Se ficar 30 anos ou mais, aí considera-se que já usufruiu da casa para ela precisar de obras de reabilitação profunda. Aí já se justifica que o proprietário use a própria caução para reabilitar de forma profunda a habitação.
Do lado do proprietário tem um rendimento seguro, e como tem a caução, em qualquer problema que ocorra o dinheiro está do seu lado. Não tem os problemas de gestão corrente e da pequena obra. E fica com dinheiro que pode mobilizar para reinvestir, rentabilizar.
Achamos que este instrumento pode ser uma alternativa muito interessante para reduzir a compra de casa, permitindo ter uma solução na qual os moradores sabem que, se precisarem de ficar ali até ao fim dos seus dias, a casa é deles enquanto viverem.