“AS MEDIDAS POLÍTICAS, EM SAÚDE, TÊM SEMPRE UM GRANDE RISCO DE INCOMPREENSÃO E ATÉ DE REJEIÇÃO”
Ciente de que, em termos de saúde, Portugal progrediu muito nos últimos anos, Adalberto Campos Fernandes, ex-presidente do conselho de Administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte e professor auxiliar convidado na Escola Nacional de Saúde Pública, rejeita a hipótese de que o Sistema Nacional de Saúde (SNS), tal como o conhecemos, esteja em risco. Contudo, na sua opinião, “a situação de dificuldade que vivemos, neste momento vai tornar mais urgente a aplicação de medidas reformistas”, o que certamente vai “melhorar o desempenho global do sistema de saúde”. Em 2012, Adalberto Campos Fernandes espera que o Orçamento de Estado “possa respeitar integralmente os compromissos assumidos pelo Estado português com a troika, sendo capaz, ao mesmo tempo, de apresentar políticas coerentes e consistentes”.
Quais são os novos paradigmas da saúde no mundo contemporâneo?
O mundo actual vive confrontado com problemas sérios ao nível do desempenho económico, com consequências directas sobre o emprego, as condições sociais e económicas e de desenvolvimento humano. A profunda transformação social e económica que ocorreu nos últimos anos, decorrente da globalização, favoreceu uma significativa mudança no padrão de procura de cuidados de saúde, em resultado de uma complexa combinação entre factores demográficos, mudanças nos factores de risco e novas expectativas dos cidadãos. A mobilidade social e as tendências para a concentração urbana acentuaram os fenómenos de pobreza e de exclusão, com repercussão sobre o desempenho dos sistemas de saúde num contexto em que o conceito de saúde evoluiu num sentido multidimensional, passando a incorporar a realização plena de uma condição efectiva de bem-estar.
Assistimos, nas últimas décadas, a grandes avanços no domínio da tecnologia ao serviço da saúde.
A inovação e a tecnologia na saúde são uma ameaça ou uma oportunidade?
A maior consciencialização individual levou a um maior nível de exigência relativamente ao acesso a cuidados de saúde diferenciados. A saúde passou a fazer parte das prioridades essenciais, nos diferentes países, enquanto as expectativas dos cidadãos foram sendo, cada vez mais, influenciadas por uma atmosfera de inovação, quer no domínio da prática diagnóstica quer nas atitudes terapêuticas. A medicina passou da fase da racionalidade científica, ligada ao conhecimento e à evidência clínica, para uma nova fase dominada pela intervenção farmacológica e tecnológica. A medicina de relação foi sendo, progressivamente, substituída pela medicina tecnológica. A relação médico-doente passou a ser influenciada por um novo e admirável “contexto tecnológico” que, em muitos casos, passou a ser dominante. Há que reconhecer, contudo, que o progresso da medicina não teria sido alcançado sem o contributo da inovação. Não teria sido possível encontrar novas respostas, ao nível clínico, que pudessem modificar a evolução natural da maior das doenças conhecidas. Tendo em conta o desenvolvimento de um poderoso mercado global de inovação, o mais importante é a qualidade das escolhas que se fazem, em cada momento, bem como a adequação das prioridades que são definidas. Mais do que nunca, os critérios de custo-efectividade e de racionalidade devem estar presentes nos processos de decisão. É, porém, indispensável que as análises de custo-efectividade sejam enquadradas num contexto ético que tenha em conta os indispensáveis princípios de equidade, transparência e de responsabilidade social.
Como tem visto a evolução do sistema de saúde em Portugal? (evolução de 1971-2011)
O sistema de saúde português teve uma evolução muito positiva nos últimos 40 anos. O caminho começou a ser trilhado em 1971 com a reforma protagonizada por Gonçalves Ferreira e Arnaldo Sampaio. Uma abordagem sistémica inovadora e pioneira dos problemas de saúde marca verdadeiramente um ponto de viragem. Podemos afirmar, com realismo, que esse período histórico foi precursor do quadro de referência das políticas públicas em saúde no nosso país. Posteriormente, a criação, em 1979, do Serviço Nacional de Saúde fez cumprir, no plano formal, o desígnio constitucional da democracia. O balanço é muito positivo. O País passou a dispor de uma rede de cuidados de proximidade de qualidade com significativa repercussão no acesso das populações a serviços de saúde de qualidade. É verdade que com os mesmos recursos teria sido possível fazer mais e talvez melhor. No entanto, essa convicção não nos deve afastar da ideia justa de que em matéria de saúde o país progrediu muito. (…)