FERNANDO SANTO


Especulação imobiliária ou uma desculpa para evitar as políticas necessária

Apesar de há alguns meses ter publicado um artigo sobre o tema da especulação imobiliária, o regresso do mesmo à ordem do dia como a causa das dificuldades de acesso à habitação a preços acessíveis e, simultaneamente, o anúncio de soluções miraculosas através de um imposto justificaram que voltasse ao tema.

Começando pelas receitas, recordo que o nosso país já recebeu, desde 2014, cerca de 70 mil milhões de euros de investimento estrangeiro destinado ao imobiliário, quase tanto como o apoio externo da troika, para além dos impostos, criaram-se empregos, dinamizou-se a economia e iniciou-se a reabilitação dos centros históricos que as políticas públicas nunca conseguiram. Tenho muita dificuldade em definir o que é especulação imobiliária, apesar de ter passado 40 anos da minha vida profissional dedicado ao urbanismo e à edificação, até porque esta designação passou a ter uma conotação ideológica negativa, desligada da realidade e como símbolo das dificuldades que enfrentam todos os que procuram uma habitação a preços acessíveis. Se revisitarmos a nossa legislação encontramos a referência a especulação em todas as épocas, sem que se conseguissem soluções que permitissem habitações a preços acessíveis na quantidade necessária. Depois de alguma pesquisa e confronto com os casos práticos, talvez me atreva a considerar que estamos perante especulação imobiliária quando alguém detém o monopólio da oferta de terrenos urbanizados em escala e condições que permitem controlar o preço de mercado.

Monopólio evidente

Neste contexto, recordo o monopólio de terrenos que a Câmara Municipal de Lisboa obteve nos anos 30 do século passado, quando Duarte Pacheco, então ministro das Obras Públicas e presidente da Câmara, expropriou um terço dos terrenos da cidade de Lisboa, a preços rústicos com base na produção agrícola, para depois iniciar a venda controlada a preços urbanos, após aprovar os respetivos planos de urbanização. Os preços de venda foram incomparavelmente superiores aos valores da expropriação. Depois e até aos nossos dias a Câmara Municipal de Lisboa foi vendendo muitos desses terrenos a preços que são incomportáveis para construir habitação a preços acessíveis. Mais recentemente a Parque Expo, única detentora de todos os terrenos na mega-urbanização do Parque das Nações, começou por vender terrenos, em 1995, a 40 contos por metro quadrado de área bruta de construção acima do solo (200 €/m2 Abc) para, passados poucos anos, vender lotes a mais de 700 €/m2 Abc. No caso da urbanização da Parque Expo, acresce que as primeiras habitações foram vendidas em 1998 a preços de cerca de 1200 €/m2, para poucos anos depois já estarem acima de 3 mil euros. Num mercado aberto e com milhares de interessados na oferta e na compra, é a lei da oferta e da procura que determina o preço final, e este está dependente das dinâmicas dos movimentos sociais, da moda e noções de valor que rapidamente atraem os que antes não tinham interesse.

 

Promoção da construção

Apesar de estas situações se encaixarem no que tradicionalmente se pode designar por especulação imobiliária, na minha opinião não estamos perante operações de tal natureza, mas perante políticas que permitiram promover a construção de dezenas de milhares de habitações, ou seja, aumentar de forma significativa a oferta. Curiosamente, após o início da crise financeira e do imobiliário de 2009, os preços reduziram para valores muito abaixo do próprio custo de produção, mesmo com o terreno a valor nulo e assim vivemos com muitas falências durante sete anos. Ora, é essa a questão de fundo que importa debater e não os mitos urbanos que alguns políticos, incapazes de soluções, procuram vender para ocultar a realidade. Não foi a Lei das Rendas de 2012 que promoveu a desertificação dos centros históricos de Lisboa, nem o turismo ou o investimento estrangeiro nessas zonas que prejudicaram o acesso dos portugueses a uma habitação a preços compatíveis com os seus rendimentos, foram muitas das políticas públicas erradas de cariz ideológico que condicionaram a diversidade da oferta desde 1974. Desde então o Estado só promoveu dois grandes programas: (i) o da Comissão de Alojamentos de Refugiados, em 1976, quando era ministro da Habitação o engenheiro Eduardo Pereira (único ministro da Habitação da nossa história), e (ii) o Programa Especial de Realojamento (PER), em 1992, lançado pelo Governo de Cavaco Silva.

 

Falsas notícias

Vejamos os números que contrariam as falsas notícias permanentemente divulgadas. Entre 1981 e 2011 (30 anos) a cidade de Lisboa perdeu 270 mil habitantes, e entre 1970 e 2011 o mercado de arrendamento a nível nacional passou de 48% do parque construído para menos de 20%, apesar de se terem construído entretanto mais 3,6 milhões de habitações. Como após 1974 foi promovido o ataque à propriedade e em particular ao mercado de arrendamento, os portugueses apenas tiveram duas soluções para terem habitação: (i) construir barracas ou (ii) recorrer ao endividamento bancário para comprar casa. Para resolver o primeiro problema, que começou nos anos 1960, foi preciso lançar os programas de realojamento social e em particular o que permitiu construir cerca de 50 % do parque atual existente, o PER, o qual terminou nos finais dos anos 1990. Desde então quase parou a construção de habitação social, mas não as necessidades dos portugueses com menos recursos, que aumentaram. Para o acesso à habitação através de compra, as famílias começaram a endividar-se no início da década de 1990, atingindo 5812 milhões de euros em dezembro de 1990, para chegar a 122.615 milhões em maio de 2010. O apoio através dos Orçamentos do Estado bonificou os juros em mais de 7 mil milhões de euros entre 1987 e 2011, ou seja, uma média anual de 280 milhões. Quanto ao apoio do Estado ao mercado de arrendamento, conforme previsto na Constituição, temos que assumir que praticamente não existe. De 60 milhões de euros em 2007 reduzimos para menos de 20 milhões em 2018.

 

Realidade à vista

Também relativamente a Lisboa e muito antes dos turistas, da Lei das Rendas de 2012 e do investimento estrangeiro, os Censos de 2011 mostram a realidade. Dos 323 mil alojamentos existentes, cerca de 50 mil (15%) estavam devolutos, 23 mil (7%) eram de habitação social, ou seja, 20% do total nacional, onde vive 17% da população, e nas zonas agora altamente valorizadas ninguém queria viver. As zonas onde atualmente se vendem apartamentos a mais de 6 mil euros por metro quadrado, com grande predomínio de estrangeiros com capital próprio e não com endividamento bancário, são as mesmas onde até 2015 não se conseguia vender um prédio por mil euros por metro quadrado e com a população residente em permanentemente redução desde 1981. Só há uma forma de reduzir os preços do mercado: (i) aumentando significativamente a oferta para venda, (ii) para arrendamento, bem como os (iii) apoios para subsídios de renda e a (iv) promoção de habitação social. E não é uma questão de dinheiro, é uma questão de prioridades, com menos ideologia e mais pragmatismo, pois as receitas com os impostos e as taxas de todo o tipo obtidas nos últimos anos através do imobiliário dariam para políticas de habitação mais distributivas que cobrissem as quatro opções anteriormente referidas. O que de facto nos falta é um imposto progressivo para as políticas demagógicas e populistas que apontam para soluções que nada resolvendo ainda têm o efeito negativo de fazer acreditar algumas pessoas no resultado das mesmas, daí a demagogia, mas entretanto, pela desconfiança que já produziram nos investidores, já agravaram o que supostamente se queria resolver.