AS MISSÕES HERCÚLEAS DE GUTERRES
Com grande orgulho de todos os portugueses, e a elevar mais alto o nome de Portugal, António Guterres, com 67 anos, ascende ao cargo máximo das Nações Unidas, como o novo secretário-geral, e chega ao topo do mundo, sucedendo, assim, a um Ban Ki-moon que, do seu mandato, deixa pouca história.
Ao suceder a alguém que parece deixar pouca história, a missão de Guterres estaria facilitada, sobretudo se lhe acrescentarmos a sua conhecida habilidade diplomática e a capacidade de diálogo, de gerar consensos mesmo entre as grandes potências e o fundamental conhecimento do terreno. Porém, as missões que o esperam são titânicas, dadas as suas dimensões e a incapacidade de gestão dos conflitos pelas partes envolvidas. Antes de mais, a guerra civil na Síria, ligada diretamente ao terrorismo e aos refugiados. Esta interminável guerra estalou em 2011 e iniciou-se com um normal protesto contra o governo sírio, aquando das primaveras árabes. Degenerou num conflito interminável, que tem dilacerado um país que já o foi e agora se confina a uma meia dúzia de áreas de influência partilhadas pelo governo de Bashar al-Assad, os rebeldes que o tentam derrubar e que representam, no essencial, a população maioritariamente sunita, grupos fundamentalistas ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico, combatido por praticamente todas as partes envolvidas.
Acentuar mais o conflito
Também do lado dos países e das grandes potências, os apoios dividem-se, sendo o governo sírio dominado há décadas pelos xiitas e apoiado pelo Iraque, milícias afegãs, o Hezbollah e sobretudo pela Rússia – o que acentua o conflito com os Estados Unidos, que protegem, por seu turno, os rebeldes, juntamente com a França e, mais recentemente, a Turquia. Ora, daqui decorre todo o fenómeno do terrorismo, dado que a Síria é a pátria do autodenominado Estado Islâmico, que nunca obteve qualquer reconhecimento da comunidade internacional, mas que tem espalhado o terror no mundo ocidental desde 2014 e se proclamou um califado, uma forma monárquica islâmica de poder.
Pouca margem de manobra
Ora nestas matérias Guterres tem pouca margem de manobra, sobretudo na questão do terrorismo e na dificuldade de o combater, porque não é um conflito convencional entre Estados, nem entre pessoas racionais, cujos líderes se desconhecem, pelo que à partida as hipóteses de diálogo são limitadas e visam, sobretudo, os países da região que também veem o islamismo radical como uma ameaça. Na decorrência destas duas guerras, uma convencional e outra informal, que surge como um fenómeno novo, está o problema dos refugiados, para o qual Guterres, enquanto anterior alto-comissário, tem uma especial sensibilidade e conhecimento, podendo resolver a questão a montante, no desenvolvimento dos países de origem deste movimento, e convencer os Estados a partilhar responsabilidades no seu acolhimento, providenciando rotas seguras de saída.
O problema dos refugiados
Neste capítulo, os números são absolutamente impressionantes e, segundo a Amnistia Internacional, existem 21 milhões de refugiados no mundo, mas as Nações Unidas computam esse número em 60 milhões, incluindo migrantes e deslocados. Só à Europa chegaram, em 2016, por mar, 184 mil refugiados e mais de 3 mil desapareceram nas travessias. Falando nos 21 milhões de refugiados que existem espalhados por todo o mundo, apenas 10 dos mais de 190 países da ONU recebem mais de cinquenta por cento daquele número, e não são sequer os mais ricos, mas os mais solidários, pelo que é necessário que o novo secretário-geral convença muitos outros a fazer a sua parte, embora enfrente uma equação difícil de resolver, que se situa entre o cumprimento dos deveres humanitários, por um lado, dando aqui mais peso à sociedade civil, e a segurança e o medo, por outro.
Outros conflitos
O conflito entre Israel e a Palestina continua aceso e a criação de um Estado palestiniano continua na ordem do dia. Esta discórdia só é passível de resolução se o tradicional antagonismo destes for regionalizado com o envolvimento dos países da região nas negociações de paz, em especial o Egito e a Arábia Saudita, que começam, face ao radicalismo islâmico, a ver Israel como um aliado. Por outro lado, há conflitos congelados na Ucrânia, na Moldávia, na Geórgia, no Kosovo, Chipre ou Sara Ocidental, intensificadores de tensões, fundamentalmente entre os Estados Unidos e a Rússia, e que se traduzem na ablação de partes do território daqueles países sem que exista um estatuto internacional para estes e que provocaram, por seu turno, milhares de deslocados, mas onde a ONU desempenhou, em certos casos, um papel crucial na interrupção deste ciclo de violência. A eleição de Donald Trump pode aproximar as duas potências, embora seja ainda imprevisível o pensamento do próximo presidente dos EUA nestas e noutras matérias de política externa, mas a capacidade de diálogo de António Guterres pode ajudar a resolver.
Outros desafios
Com efeito, um outro desafio do novo secretário-geral será manter uma posição de equidistância e de imparcialidade entre as grandes potências, pois a História demonstra que se perder o apoio destas, poderá levar a consequências como o que aconteceu no consulado de Boutros-Ghali, cuja crítica aos Estados Unidos lhe custou a reeleição. Finalmente, e apenas para citar os desafios mais difíceis de António Guterres, embora não seja esta a sua primeira prioridade face aos inúmeros conflitos mundiais, está a reforma da própria organização das Nações Unidas, que será importante se lhe for conferida maior agilidade e maior independência, designadamente na seleção dos seus funcionários, como veículo de resolução mais eficaz das questões humanitárias. Contudo, para já é impensável que Guterres consiga a alteração de poderes de cada um dos órgãos da ONU e sobretudo do Conselho de Segurança e da entrada neste de novos países, apenas podendo tentar, no limite, reconstruir o diálogo entre os seus membros. As expectativas sobre António Guterres são muito altas, mas, como dizia Kofi Annan, o secretário-geral das Nações Unidas não tem uma varinha de condão nem é o feiticeiro de Oz.