SAMUEL FERNANDES DE ALMEIDA

Um novo paradigma fiscal

Continua em passo acelerado a adoção e implementação de legislação que visa um combate mais efetivo à fraude e evasão fiscal. A era do sigilo bancário e fiscal chegou ao seu fim, e o paradigma do planeamento e aconselhamento fiscal terá necessariamente de se ajustar.

Estamos, definitivamente, a entrar numa nova era. Da soberania fiscal de cada Estado passamos para uma fiscalidade transnacional, em que os próprios mecanismos de defesa dos contribuintes assumirão uma dimensão progressivamente global. O diploma mais recente é a Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, que vem transpor para a legislação nacional a denominada Diretiva Antielisão, alterando os códigos do IRC, IVA e o Código de Procedimento e de Processo Tributário. Uma das alterações mais significativas prende-se com a alteração ao regime de imputação de lucros obtidos por acionistas portugueses em sociedades não residentes em Portugal e sujeitas a um regime fiscal mais favorável. Com efeito, se até agora era possível afastar a aplicação da regra quando a taxa nominal de IRC não fosse inferior a 60% da taxa de IRC, agora passa a exigir-se que o imposto sobre os lucros não seja inferior a 50% do imposto que seria devido em Portugal. Isto faz com que, por exemplo, dispondo Malta de uma taxa nominal de 35%, mas com mecanismos que permitem reduzir a taxa efetiva para 5%, passe a estar sob o escrutínio de uma malha mais fina. Tratando-se de um Estado-membro da UE, o Código do IRC passa a exigir, para que a norma seja afastada, que a sociedade prossiga efetivamente uma atividade comercial ou de prestação de serviços, que o seu funcionamento seja ditado por razões economicamente válidas e a atividade seja prosseguida com recurso a pessoal, equipamento e instalações (densificando um pouco o conceito de substância). Naturalmente que este tipo de normas visa sobretudo o combate a estruturas de planeamento fiscal familiar e de grandes fortunas. Em linha com esta medida, é igualmente alterada a Cláusula Geral Anti-Abuso, alargando-se, por exemplo, a responsabilidade ao substituto tributário em caso de não aplicação de retenção definitiva ou redução de taxa em casos em que o substituto conhecesse ou devesse conhecer a existência de uma série de construções abusivas ou não genuínas.

 

Legislação a ser adotada

Noutra perspetiva, Portugal terá de transpor para a sua legislação até final deste ano a denominada Diretiva DAC6, a qual impõe a consultores fiscais, intermediários financeiros e advogados o reporte às autoridades fiscais nacionais de esquemas de planeamento fiscal agressivo. A diretiva define um conjunto de operações e circunstâncias em que se presume que um esquema seja agressivo. A obrigação de reporte abrange operações realizadas a partir de 25 de junho de 2018 e deve ser implementada a partir de 1 de julho de 2020. Cada Estado-membro poderá alargar o âmbito de aplicação da referida obrigação de reporte, as coimas, bem como os casos de dispensa da referida obrigação em virtude da vigência de sigilo profissional, recaindo, nesse caso, sobre o próprio cliente a obrigação de reporte. Aguarda-se, pois, com expetativa qual o âmbito e amplitude da legislação a ser adotada em Portugal, sabendo-se que a última experiência legislativa neste tema redundou num rotundo fracasso.

 

Arbitragem fiscal transnacional

Uma nota final para outro diploma muito relevante recentemente aprovado em Conselho de Ministros e que consiste na transposição de uma diretiva comunitária em matéria de arbitragem fiscal transnacional. O novo regime aplicar-se-á primordialmente a conflitos relacionados com questões de dupla tributação, em particular sobre a interpretação e aplicação de acordos sobre dupla tributação. De acordo com o regime previsto na diretiva, num primeiro momento o caso é apresentado às autoridades fiscais dos Estados-membros em causa, com o objetivo de se alcançar uma resolução por mútuo acordo. Sendo impossível alcançar esse acordo dentro de um prazo determinado na lei, o caso é encaminhado para um procedimento de resolução de litígios. Os Estados-membros têm até 30 de junho para tomar as iniciativas legislativas e administrativas necessárias para cumprir a diretiva, sendo esta aplicável a qualquer reclamação apresentada a partir de 01 de julho de 2019 sobre questões respeitantes a rendimentos ou capitais auferidos no ano fiscal iniciado a 01 de janeiro de 2018. Portugal poderá adotar uma posição charneira nesta matéria, uma vez que dispõe do sistema mais evoluído de arbitragem tributária, a qual se tem revelado, aliás, um sucesso.

 

Nota final: é extraordinário que numa época de tão profundas alterações legislativas com impactos significativos nas relações tributárias entre Estados-membros, com o advento da era digital ou tantos outros desafios, a campanha eleitoral às europeias seja totalmente omissa sobre estes e outros temas de dimensão europeia. Uma prova da menoridade da nossa classe política e do constante empobrecimento da nossa democracia.