SAMUEL FERNANDES DE ALMEIDA

AINDA TEMOS ESTADO DE DIREITO?

O artigo 303.º da Lei do Orçamento do Estado de 2019 veio determinar a obrigação do Banco de Portugal e instituições financeiras de remeterem ao fisco as declarações entregues por sujeitos passivos ao abrigo de Regimes Excecionais de Regularização Tributária, os famosos RERT.

Como os leitores se recordarão, o último RERT data de 2012 e permitiu a regularização – mediante o pagamento de uma taxa nominal de 7,5% – de elementos patrimoniais não declarados em Portugal (ou seja, detidos no estrangeiro), bem como respetivos rendimentos respeitantes aos períodos de tributação que tenham terminado até 31 de dezembro de 2010. Uma das pedras de toque deste regime consistia, por um lado, no absoluto regime de confidencialidade entre os contribuintes e o Banco de Portugal, bem como a exclusão de responsabilidade contraordenacional e criminal em virtude de eventuais omissões declarativas e de pagamento verificadas nos referidos períodos de tributação. Independentemente da opinião que cada um tenha sobre este tipo de regimes – sejamos claros a este respeito, sou frontalmente contra, pois constituem uma afronta para os milhões de portugueses que com sacrifício pagam atempadamente os seus impostos, não vislumbrando qualquer efeito pedagógico como alguns advogam – a verdade é que o último RERT foi aprovado através de Lei do Parlamento – a casa da democracia – e consistia num contrato fiscal por via legal: em contrapartida de receita que era necessária para o equilíbrio das contas públicas, o Estado português assegurava (I) absoluta confidencialidade do processo, elementos declarados e identidade dos declarantes; (II) determinava a extinção de qualquer responsabilidade por infrações tributárias. Foi neste pressuposto que o Estado português arrecadou mais de 258 milhões de euros.

 

Acordo político

Ora, no âmbito do acordo político alcançado pelo Governo com os seus parceiros da Geringonça – uma medida, aliás, que não constava da versão inicial da proposta de Orçamento e que não mereceu qualquer anúncio ou discussão pública –, o Parlamento português aprovou através da Lei do Orçamento deste ano a obrigatoriedade de transmissão de todos os dados recolhidos nas declarações dos RERT, abrindo a porta à Autoridade Tributária para: (i) criar uma lista negra de contribuintes; (ii) abrir procedimento inspetivos em relação a estes exercícios fiscais, ainda que esteja salvaguardada a impossibilidade destes mesmos contribuintes serem responsabilizados pelos factos e elementos declarados, inviabilizando a possibilidade destas declarações de regularização como elementos de prova; (iii) contudo, estes mesmos elementos podem ser utilizados para fundamentar novas diligências inspetivas, em particular para verificar a não regularização de outras dívidas e obrigações tributárias; (iv) elaboração de um relatório por parte da Autoridade Tributária sobre os principais esquemas de planeamento fiscal identificados.

 

Sigilo bancário

Com este regime, basicamente o Parlamento ordenou o levantamento do sigilo bancário e fiscal de elementos patrimoniais declarados ao abrigo de um diploma que lhes assegurava, precisamente, o tratamento sigiloso de todos os dados por si declarados, em particular os tipos de ativos detidos, jurisdições utilizadas e até as instituições financeiras que serviram de canal para a realização desses mesmos investimentos. Política e moralmente, trata-se de uma medida que envergonha o Estado português e qualquer pessoa de bem. Fica, de novo, provado que o Estado não é uma entidade confiável, colocando em causa, uma vez mais, os mecanismos de representatividade que devem naturalmente nortear a atividade parlamentar. Lamentável, numa palavra. Mas ainda mais lamentável são os problemas legais que daqui decorrem, pois parece que o Parlamento português desconhece o princípio constitucional da confiança, ínsito no artigo 13.º da Constituição da República. A proteção da confiança dos cidadãos relativamente à ação dos órgãos do Estado é um elemento essencial, não apenas da segurança da ordem jurídica, mas também da própria estruturação do relacionamento entre Estado e cidadãos em Estado de direito. Sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos suscetíveis de se refletirem na sua esfera jurídica. Trata-se de uma violação ostensiva dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem o direito de poder confiar que, aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas, se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico. Ora, face à jurisprudência do Tribunal Constitucional, parece relativamente pacífico que a norma constante da lei orçamental viola precisamente os princípios da segurança e da proteção da confiança, pois que os contribuintes foram induzidos a reportar comportamentos potencialmente incriminadores – violando, aliás, o princípio legal de direito de não incriminação –, abrindo as portas agora às autoridades fiscais para identificarem – ao abrigo precisamente de dados que estavam protegidos por sigilo fiscal – comportamentos de risco e abrirem procedimentos inspetivos ao abrigo de informação que de outra forma nunca teriam obtido. Não tenho dúvidas de que os casos de contencioso serão mais que muitos, esperando-se uma ação e reação enérgica dos tribunais, repondo a confiança que os nossos parlamentares decidiram ignorar. Uma vergonha, meus caros leitores.