Rebeldia e determinação são traços marcantes da personalidade de Luna Andermatt, a mulher que lutou pela dignificação da dança clássica em Portugal. Pelas suas mãos passaram muitos dos bailarinos mais conceituados que integraram a Companhia Nacional de Bailado e o Ballet Gulbenkian e que marcaram decisivamente o panorama da dança portuguesa. A formação de Luna Andermatt começou em Portugal, com Margarida de Abreu, mas foi em Londres que cresceu. Quando regressou, os jornais chamaram-lhe a “Pavlova Lusitana”, mas não havia, no Portugal de então, grande espaço para os seus voos. Não havia a carreira de bailarina clássica. Não havia o reconhecimento. Foi preciso chegar a 1976 e ao convite de David Mourão Ferreira, então secretário de Estado da Cultura, para recuperar o antigo projeto da Companhia Portuguesa de Bailado, e a partir daí Luna Andermatt começou a desenhar o que viria a ser a Companhia Nacional de Bailado. Ao lado de Armando Jorge, Vera Varela Cid e Pedro Risques Pereira, formaram bailarinos e instituíram um novo modelo de apresentação que distinguia a dança dos saraus de ballet. Foi a essa dignificação que dedicou parte da sua vida e a ela se deve a instituição da dança clássica em Portugal.
Uma mulher diferente
Mulher de profundas convicções, a dança enchia-lhe a alma e tornou-se desde muito cedo o centro dos seus interesses, embora não fosse uma opção sensata, naquela época, para uma menina de boas famílias. Ela sabia-o bem quando se matriculou no Conservatório sem dizer nada a ninguém, mas não conseguiu manter o segredo quando surgiram as apresentações nas óperas do São Carlos. E teria sido difícil impor-se ao descontentamento da família se não fosse o apoio da mãe, Maria João Luna Andermatt, também ela uma artista, mulher tenaz e audaciosa. Sem chegar a conhecer o pai, que faleceu antes de a filha fazer um mês, Luna foi educada num ambiente de disciplina e rigor, entre o Convento da Encarnação, onde vivia com a mãe, e o Instituto de Odivelas, sempre sob o olhar atento de um general do Exército, seu tio e tutor. Mas a jovem Mitó – como a chamavam – não deixou por isso de alimentar um espírito livre e alegre.Aos 24 anos vai para Londres estudar dança na escola do Saddlers Wells, como bolseira do Instituto de Alta Cultura. Aí trabalhou com grande afinco, com grandes mestres, para se aperfeiçoar tecnicamente e aprofundar o conhecimento sobre métodos do ballet. Depois das aulas ia para as bibliotecas consultar manuais e tirar notas, aproveitando o acesso a um mundo de conhecimento que não tinha em Lisboa. Quando regressa ao Círculo de Iniciação Coreográfica de Margarida de Abreu, já como primeira bailarina, é recebida com muita expetativa e aclamada pelo público e pela crítica. Mas com pouca margem para altos voos. Começa então a concretizar o seu sonho de dignificar a arte da dança em Portugal. Para tal, e isso estava muito claro na sua cabeça, era preciso formar bailarinos profissionais, era preciso criar uma Companhia Nacional de Bailado para colocar a dança ao nível das outras artes e divulgá-la, despertando o gosto pelo seu conhecimento e pela sua prática. O entusiasmo do regresso a Portugal e a afirmação do seu projeto para a dança no país são indissociáveis do seu casamento com Francisco Brás de Oliveira – parceiro desde a primeira hora e apoiante incondicional na concretização das etapas que estavam por vir. A dança e a família eram e foram os seus grandes amores, profundos e perfeitos.
A partir dessa altura, para além de continuar a dançar, Luna Andermatt investe na formação profissional, criando o Centro de Estudos de Bailado no Teatro Nacional de São Carlos. Promove espetáculos com as suas alunas em vários teatros e volta a partir. Para Londres e para Paris, onde aposta no ensino da dança. Frequentando cursos especiais para professores, aprende os mais inovadores métodos de ensino. Tem entretanto os primeiros dois filhos, Maria de Assis e Francisco de Assis. Entre as papas, as aulas e os espetáculos, vale-se de uma lambreta e da simpatia dos polícias sinaleiros. Sempre a acelerar, de um lado para o outro, quando chegava ao cruzamento o polícia apitava, o trânsito parava e ela passava.
Alguém muito especial
Luna era uma mulher pouco canónica, fora e dentro das aulas. Era uma professora que gostava de circular entre as suas alunas, em exercícios na barra, de salto agulha e com a sua eterna boquilha. A primeira oportunidade de concretizar o sonho de criar uma companhia oficial de bailado surge em 1961, com a estreia da Companhia Portuguesa de Bailado no Teatro Nacional de São Carlos. Mas a guerra do Ultramar troca-lhe as voltas. A verba que lhe estava destinada foi canalizada para a guerra que entretanto rebentara em Angola. Luna Andermatt fecha a companhia, mas não desiste. Não era de desistir! Continua a matutar e a conceber projetos. A ensinar, a estudar e a escrever sobre dança. A convite da RTP, concebe e apresenta com Vera Varela Cid dois programas quinzenais sobre a história do bailado e os bastidores do espetáculo. A “Metamorfose da Dança” e “Do Estúdio ao Palco” marcaram a época. Estes programas televisivos foram considerados marcos de rigor e qualidade no panorama da cultura nacional. Luna era perfecionista. “Põe quanto és no mínimo que fazes/ Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui/ Sê todo em cada coisa”, gostava de citar aos netos este poema de Ricardo Reis. Foi preciso esperar pela Revolução dos Cravos para concretizar o sonho da criação da Companhia Nacional de Bailado, nascida oficialmente em 1977. Durante seis anos, viveu intensamente todos os momentos de afirmação da companhia. Saiu em 1983, com a satisfação de ver cimentado o prestígio da CNB e o seu reconhecimento institucional. Também com a satisfação do dever cumprido. Embora tenha dançado, coreografado e dirigido a Companhia Nacional de Bailado, o ensino terá sido a atividade a que Luna Andermatt mais se dedicou ao longo do tempo, e deu bons frutos. Tinha fibra de pedagoga. Tinha prazer na formação dos jovens. Muitas das bailarinas que passaram pelas suas mãos seguiram carreira na Companhia Nacional de Bailado, no Ballet Gulbenkian e até na cena independente, como é o caso de sua filha, Clara Andermatt. Mas são muitos mais os que hoje reconhecem na sua formação com Luna Andermatt uma experiência decisiva de preparação, não só profissional como para a vida.
Coragem, concentração, autodisciplina, confiança e trabalho, muito trabalho, foram o seu lema. Para si própria e para os seus alunos. E foi chamada a prová-lo, há relativamente pouco tempo, quando recebeu o desafio de regressar ao palco com 83 anos. Convidaram-na a participar como intérprete numa peça de teatro-dança a estrear no São Luiz. Implicava contribuir, falar da sua experiência e dançar, imersa num processo criativo contemporâneo. Um estar na criação e no palco completamente novo para ela. Sentiu medo, mas não “fugiu”. Gostava de desafios e quis experimentar. Era a ocasião para agir de acordo com o que pensava e com o que em tempos escreveu: “Ninguém envelhece só por viver muitos anos. A juventude não é uma época da vida, é um estado da alma. Não é uma questão de faces lisas, lábios vermelhos e joelhos bonitos. É uma força de querer, uma qualidade da imaginação, um rigor de emoções. É uma frescura da profunda primavera da vida.” E assim foi. Abriu o coração, dedicou-se ao trabalho de pesquisa, abandonou-se ao magnetismo do seu estar em palco, surpreendeu e surpreendeu-se com a reação do público. A sua presença em palco acusava a rebeldia que não conseguia esconder-se atrás de uma rigorosa educação clássica nem da elegância de quem tinha sobre o corpo um conhecimento profundo. Por isso, quando a filha Clara a quis dirigir no espetáculo Maior, estreado no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, no ano seguinte, Luna surpreendeu-se. Mais tarde repetiu a experiência dentro da Companhia Maior em mais dois projetos apresentados no CCB. No fundo, viveu até ao fim de acordo com o que escreveu nas suas notas de juventude sobre o ser da dança: “A dança é desafio ao impossível, e é rigor infatigável, da ponta dos pés ao fundo da alma.” Quando em maio deste ano a Câmara Municipal de Lisboa a homenageou com a medalha de ouro da cidade, no palco do Teatro Camões, sede da Companhia Nacional de Bailado, que fundou em 1976, com o humor que nunca a abandonava, disse: “Se pudesse ainda dançar, saberia agradecer melhor esta homenagem.” Maria Antónia Luna Andermatt Brás de Oliveira faleceu no passado dia 5 de novembro, mês em que fazia 88 anos. Até sempre Luna!