SAMUEL FERNANDES DE ALMEIDA

Lisboa - Palcio de So BentoA DEGRADAÇÃO PROGRESSIVA DA VIDA POLÍTICA

A morte de Mário Soares veio despertar, em mim, um certo saudosismo dos meus tempos de juventude, em que a vida política nacional era conduzida por políticos capazes de moldar o futuro e apontar um caminho.

Líderes que conduziam a nação e não eram conduzidos pela espuma das sondagens, da popularidade construída e moldada por empresas de comunicação. Homens que tinham uma visão e um projeto para o país. Dei por mim a recordar Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa, Salgado Zenha, Mota Pinto ou Álvaro Cunhal. A intensidade do combate político, a esperança na construção de um Portugal democrático e livre. Não sou de elogios fúnebres, mas ninguém fica indiferente – revendo-se no mesmo ou não – ao legado político de Mário Soares, à sua luta pela liberdade e afirmação de Portugal. Lamentavelmente essa herança política tem-se vindo a esvanecer, afastando as populações e o eleitorado dos seus representantes políticos e, pior que tudo, enfraquecendo sucessivamente uma sociedade civil dormente e acomodada. Adormecida no debate, conformada com a falta de valores e de um verdadeiro projeto político para o país. Este fenómeno, aliás, não é um exclusivo nacional, vejam-se as crescentes taxas de abstencionismo na Europa, o pântano em que se tornou o projeto europeu e a União Europeia, ou a degradante campanha presidencial nos EUA. Como referi noutro texto, preocupante não é a vitória de Trump, mas sim que um candidato presidencial possa ter um discurso político tão superficial e assente na discriminação das mulheres ou das minorias e que esse mesmo discurso possa ter acolhimento junto de uma franja tão importante da sociedade americana. Um ataque profundo aos valores mais profundos da democracia ocidental. Ou a passividade com que assistimos à edificação de muros em Calais, na fronteira da Hungria com a Sérvia ou a apropriação de bens de elevado valor a refugiados, aprovada pelo Parlamento da Dinamarca. Não é, apenas, o Estado social que está em causa, mas a própria democracia e liberdade.

 

Tempos de transiçãoDiscussão e votação do Orçamento Rectificativo para 2009

Vivemos tempos perigosos de transição, mas vivemos, acima de tudo, tempos perigosos de ausência de valores. A mentira – disfarçada de realismo – apoderou-se do discurso político, tal como a praxis odiosa de violar ostensivamente os compromissos e programas eleitorais. Voltemos a Portugal. A chegada ao poder da geringonça teve o mérito de quebrar com a tradicional rotatividade de poder, abrindo espaço a um debate político que se esperava mais plural e, diria mesmo, mais ideológico. A ideologia reforça a democracia e a consciência cívica de uma sociedade. Contudo, verifica-se que tanto o Bloco de Esquerda como o PCP estão amarrados, no essencial, à agenda política de António Costa, o qual habilmente tem esvaziado a intervenção dos seus parceiros à esquerda e manietado um PSD sem liderança e sem rumo.

 

País sem rumo?

A condução de uma gestão política “realista” e de navegação à vista deixa o país sem rumo e sem estratégia. Neste momento não se discute em Portugal nenhuma reforma para o país. A reforma da Segurança Social – a verdadeira e não os sucessivos remendos que lhe têm sido feitos – está na gaveta, tal como a revisão do sistema político ou a reforma do Estado. Na justiça reabrem-se tribunais, mas as verdadeiras reformas continuam todas por fazer. Os magistrados continuam atolados em milhares de processos – sem qualquer apoio técnico ou administrativo –, ao mesmo tempo que se alocam aos tribunais auxiliares administrativos que não sabem mexer em computadores. Ou toleramos que um dos pilares do Estado e da democracia continue a servir os cidadãos em contentores, num sinal de desrespeito e degradação da soberania do Estado português. No entretanto, continuamos a discutir, alegremente, a “recalibragem” do sistema fiscal e proclamando a nossa suposta competitividade, quando temos uma economia asfixiada por um sistema fiscal devorador de recursos e totalmente desincentivador de qualquer iniciativa privada. Recorde-se que temos uma das taxas de IVA mais elevadas da EU ou que o nosso IRC – com as derramas – chega quase a 30%. Ou que temos a economia inundada de taxas e contribuições que fogem ao controlo da legalidade parlamentar. Ou que nos cinco escalões de IRS, o terceiro escalão (de 37%) é aplicável a rendimentos acima de 20 mil euros, o que é absolutamente chocante e inaceitável. Tudo isto para pagar uma dívida que chega aos 130% do PIB e cuja taxa de juro está neste momento acima de 4,2%, no limiar do insustentável para as nossas contas públicas. Neste contexto, assistir ao degradante espetáculo do debate político em torno do banco público ou da TSU não deixa de ser um elucidativo exemplo de cinismo político e da falta de coragem para atacar os verdadeiros problemas do país.