PANAMA PAPERS: DESAFIOS E AMEAÇAS
A investigação levada a cabo pelo consórcio internacional de jornalistas colocou em alvoroço a opinião pública, debilitando, ainda mais, os poderes político e financeiro. O que sempre se suspeitou ganhou vida, existem nomes, caras e percebe-se, agora, que este fenómeno é transversal e exige certamente uma resposta global. Tornou-se, igualmente, evidente a forma hipócrita como este tema tem sido gerido internacionalmente e os riscos que o mesmo representa para os valores e garantias de um Estado de direito. Analisemos cada um deles.
A utilização em si mesmo de uma sociedade localizada numa zona offshore não constitui por si só qualquer crime. Trata-se de um instrumento que pode ser utilizado para fins legítimos, ou não. Muitas das vezes não o será, sob os olhares coniventes do poder político e das maiores economias mundiais. Só as Ilhas Virgens Britânicas – território administrado pelo Reino Unido – têm bem mais de 500 mil empresas aí sediadas. E os Estados Unidos, que apesar de terem conseguido criar um sistema internacional de vigilância dos seus cidadãos e empresas – o sistema FACTA – conseguem a proeza de manter no seu território diversas zonas de baixa ou nula tributação, como o Nevada ou Delaware, apenas disponíveis para entidades não residentes e com transações fora dos EUA. Por outro lado, existem muitos tipos de jurisdições com regimes fiscais privilegiados ou preferenciais, sendo que nem todas podem ser colocadas no mesmo plano. Se por um lado temos jurisdições opacas – em que se privilegia a proteção da identidade do beneficiário, ausência de troca de informações ou total segredo fiscal – também temos jurisdições com acordos de Troca de Informações ou mesmo acordos de Dupla Tributação em vigor. E dentro destas, temos muitos subtipos, não se podendo ignorar que o Panamá – sim, esse mesmo – tem um Acordo de Dupla Tributação com Portugal, tal como os Emirados Árabes Unidos, só para citar dois casos. E temos, ainda, regimes fiscais privilegiados e aprovados no seio da União Europeia, como o Centro Internacional de Negócios da Madeira, o qual atribui um conjunto de benefícios fiscais condicionados, sendo-lhe plenamente aplicáveis as regras e demais legislações nacionais e comunitárias. Colocar tudo no mesmo plano é a melhor forma de confundir a opinião pública, de modo a que mudando tudo, afinal tudo fique na mesma. Por outro lado – e tirando os fenómenos de criminalidade organizada que deverão merecer um tratamento distinto e separado – nem todo o planeamento fiscal é abusivo, sendo que mesmo o planeamento fiscal abusivo pode não consubstanciar um crime de fraude fiscal. Por exemplo, se uma empresa utilizar uma jurisdição offshore para manipular os preços praticados no seio das suas transações internas – transferindo custos para jurisdições de alta tributação e proveitos para zonas de baixa tributação – pagando os impostos formalmente devidos, poderá ser objeto de correções fiscais, mas dificilmente se consumará um crime de fraude fiscal. Ou mesmo a criação artificial de estruturas societárias para melhor aproveitar as diferenças de tributação e os acordos de dupla tributação. Poderá haver abuso de forma jurídica, sem crime de fraude fiscal. Nesta matéria, é bom que se diga que uma parte importante do fenómeno da criminalidade fiscal encontra-se dentro de portas, bastando pensar na fraude em carrossel no IVA, na faturação falsa, na omissão de rendimentos, na simulação do preço nas transações imobiliárias, só para citar alguns casos. Chegados a este ponto, que fazer?
Alterações necessárias
Bom, antes de mais, intensificar os mecanismos de cooperação internacional e forçar o encerramento de todas as jurisdições não cooperantes. Não deixa de ser curioso, no plano político, que os Estados estão mais preocupados com a preservação das suas receitas tributárias do que prevenir os fenómenos de criminalidade associados a algumas destas jurisdições. Por outro lado, é forçoso promover no seio da União Europeia uma maior harmonização fiscal, pois a concorrência fiscal feroz entre Estados-membros potencia o aproveitamento (i)legítimo das diferenças de regimes fiscais. Mas essa mesma harmonização terá de ter em conta as disparidades de dimensão dos diversos Estados e das suas respetivas economias. As disparidades e assimetrias entre os vários Estados da EU não podem deixar de fora os aspetos fiscais. Há muito que defendo que um pequeno país como Portugal não pode ter uma política fiscal idêntica à do Reino Unido, França ou Alemanha – sendo que nalguns casos temos um sistema fiscal menos atrativo do que alguma destas grandes economias – o que se mostra desastroso em termos da nossa capacidade de atrair investimento estrangeiro e para a competitividade da nossa economia. Num outro plano, será, igualmente, forçoso promover um debate sério e inadiável sobre a dimensão e sustentabilidade do atual Estado social. O atual nível de carga fiscal em Portugal – cerca de 35% do nosso PIB –, mas sobretudo a nossa taxa de esforço fiscal – cerca de 50%, a maior da EU –, é totalmente desadequado para a dimensão da nossa economia e não promove a eficiência económica. Até que ponto estaremos dispostos a aumentar a pressão fiscal de modo a suportar um modelo social que na sua atual configuração está em rutura? Estaremos dispostos a continuar a aumentar a voracidade fiscal para continuar a suportar o aumento descontrolado da despesa pública, da ineficiência e de falta de rigor na gestão dos dinheiros públicos? Não se trata de austeridade, mas sim de assegurar um modelo sustentável numa perspetiva intergeracional, pois a todos nos deve sobressaltar a perspetiva de deixarmos uma sociedade e um Estado ingerível para as gerações vindouras. Finalmente, e não menos importante, qual o grau de sacrifício das nossas liberdades individuais: nós estamos dispostos a abdicar em nome do combate ao terrorismo, criminalidade e fraude fiscal? Pessoalmente, incomoda-me, e muito, a disponibilização maciça de dados pessoais junto de autoridades públicas. Quem assegura a integridade e inviolabilidade desses dados? Ainda há poucos meses fomos confrontados com a violação de dados fiscais de diversos contribuintes em Portugal, pondo a nu a debilidade dos mecanismos de controlo de acesso no seio da Autoridade Tributária. A luta contra qualquer fenómeno de criminalidade constitui um desiderato coletivo, mas a manutenção do Estado de direito, tal como o conhecemos, deve igualmente estar no centro do debate político, sob pena de, a coberto de uma eficaz cobrança de impostos, passarmos a viver num Estado policial e com predomínio absoluto da máquina pública, em detrimento da liberdade individual de cada um de nós. No atual clima político, o risco de diluição intolerável das garantias individuais em nome de um benefício coletivo é um risco efetivo. Fica aqui o alerta para o que pode aí vir.