SAMUEL FERNANDES DE ALMEIDA

UMA TENDÊNCIA PREOCUPANTE

A globalização chegou à fiscalidade e com ela iniciou-se uma nova era nas relações tributárias, bem como na delimitação dos poderes de investigação e punição dos comportamentos evasivos e fraudulentos. Trata-se de uma evolução necessária, quer do ponto de vista de proteção das receitas públicas – e foi esta necessidade que fez avançar o G7 para a implementação de um plano de ação a nível global (o denominado “BEPS”) –, quer do ponto de vista social.

Numa época de pressão sobre as finanças públicas e consequente compressão de prestações sociais, bem como aumento da carga fiscal, torna-se social e politicamente inaceitável que possam persistir políticas públicas que possibilitem (e mesmo fomentem) a evasão fiscal. O segredo bancário absoluto, jurisdições opacas sobre a titularidade de ativos e estruturas societárias, zonas de tributação zero, chegaram ao fim. Estamos numa nova era, cujos contornos e consequências ainda não conseguimos prever com exatidão, na certeza, porém, de que nada ficará como dantes, seja a nível político, seja no reequilíbrio das relações económicas entre estados ou no reforço inevitável dos poderes de investigação concedidos às autoridades tributárias. Nada ficará exatamente como dantes. Mas voltemos ao início, pois não é esse o objeto deste texto, embora se impusesse este introito de enquadramento prévio.

Generalização e banalização do recurso à ameaça penal

A tendência que se impõe denunciar e alertar consiste na generalização e banalização do recurso à ameaça penal como forma de coação dos contribuintes na regularização da sua situação tributária, e/ou alargamento dos prazos de investigação e cobrança de tributos. Esta é uma nova tendência que se constata transversalmente na Autoridade Tributária, Segurança Social e cobrança de imposições aduaneiras. O método é simples e consiste em invocar em sede inspetiva a existência de indícios da prática de um crime de fraude fiscal, abuso de confiança ou outro crime em matéria aduaneira, alargando-se dessa forma o prazo de caducidade e prescrição pelo período em que durar o inquérito criminal. Ora, a questão não reside no recurso a este expediente como forma de iniciar um procedimento de investigação perante indícios sérios da existência da prática de um crime, mas a tendência crescente de recurso a este expediente para alargar de forma abusiva os prazos legais e, mais gravoso, exercer uma forma de coação sobre os contribuintes sem que existam fundamentos sérios ou mesmo indícios da prática de qualquer crime. Num Estado de Direito, não se mostra aceitável usar a espada criminal, colocando em causa a imagem das empresas e dos seus gestores – com repercussões a nível reputacional e de idoneidade para o exercício de certos cargos –, sem que a abertura do processo de inquérito esteja fundamentada na existência de indícios credíveis da prática de um crime tributário. Esta tendência é tanto mais preocupante num contexto de crescente diminuição das garantias dos contribuintes: recurso sistemático ao levantamento do sigilo bancário e fiscal, aumento dos prazos de investigação que podem ir até aos 12 anos em matéria de caducidade ou suspensão dos prazos de cobrança até encerramento dos processos de inquérito. Estamos a entrar numa nova era em que a multiplicidade de fontes de informação e cruzamento de dados trarão inevitavelmente um novo paradigma às relações tributárias, com riscos sérios ao nível do correto equilíbrio de poderes num Estado de Direito. Um uso indevido destes novos mecanismos colocará, inevitavelmente, uma pressão inaceitável sobre os contribuintes e constitui uma ameaça ao funcionamento da democracia.

Novo paradigma

Este novo paradigma exige um sério escrutínio judicial por parte dos magistrados do Ministério Público, a quem cabe em última instância a condução dos processos de investigação criminal. Fica aqui o alerta público, na certeza de que este não é um problema apenas daqueles que mais recursos têm, mas um risco que afeta a sociedade no seu todo, pondo em causa a liberdade de escolha dos agentes económicos. Neste ponto, nunca é demais recordar que a opção legítima por soluções de eficácia fiscal não se confunde com práticas abusivas e fraudulentas tendo em vista a redução ilegítima dos encargos tributários.