PORTUGAL 2030

A SAÚDE EM DEBATE

 

Onde vamos estar daqui a 15 anos? Que Serviço Nacional de Saúde teremos face a políticas que tendem a agudizar a restrição orçamental na Saúde? Que ameaças enfrentamos? Estes foram alguns dos temas em discussão por um painel de especialistas convidados para o lançamento do primeiro debate do ciclo Portugal 2030, promovido pela revista FRONTLINE.

 

Portugal 2030 é uma iniciativa lançada pela revista FRONTLINE, com o objetivo de trazer para o espaço público novas ideias, novas abordagens, também novas preocupações sobre o que nos espera, a nós, portugueses, num futuro próximo, face a um presente que muitos já consideram como um profundo retrocesso civilizacional.

Tentar perceber que Saúde terão os portugueses, particularmente numa altura em que se vivem restrições orçamentais sem precedentes nesta área, foi o tema central do primeiro debate do ciclo Portugal 2030, que teve lugar no dia 24 de outubro, no Hotel Tiara Park, em Lisboa, e reuniu quatro oradores convidados: Adalberto Campos Fernandes, professor da Escola de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa; João Almeida Lopes, presidente da APIFARMA; José Carlos Martins, administrador da José de Mello Saúde, e Luís Pisco, vice-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. A área da Saúde enfrenta hoje um conjunto alargado de novos desafios, ao que acresce o facto de muitas das políticas seguidas terem sistematicamente subestimado efeitos colaterais do ponto de vista económico e social, para além da estrita prestação dos cuidados médicos.Por outro lado, a pressão mediática das nossas sociedades tem drasticamente contribuído para uma visão muito condicionada das problemáticas da saúde, reduzindo o enfoque do debate de ideias, reduzindo o leque de protagonistas, para além da excessiva politização a que temos assistido.Face ao retrato atual do setor da Saúde em Portugal, que ameaças enfrentamos? Que Saúde vamos ter em 2030?

 

Intervenções em destaque

Para Adalberto Campos Fernandes, antes de mais é preciso ter a ideia de que a Saúde é um cimento da sociedade e um motor para o seu desenvolvimento. Mas projetar o futuro é impossível quando tão-pouco temos uma ideia do que queremos fazer no presente, para além da certeza que é fundamental convencer os políticos de que a Saúde deve estar no eixo das prioridades do país: “Todos os indicadores da Saúde em Portugal são maus. Portugal é dos países que menos gasta per capita, onde a percentagem da despesa pública é mais baixa, onde a comparticipação das famílias não para de crescer, para apenas enumerar alguns indicadores. Dito isto, tudo se resume a uma questão de prioridades e opção. Se no Orçamento do Estado o que tenho de afetar à Saúde, à Educação, à Defesa, ao Ambiente, às Obras Públicas for exatamente igual e eu não tiver instrumentos de equidade orçamental, então só me resta considerar que temos efetivamente vivido acima das nossas possibilidades. E esta é a narrativa oficial e daí que a Saúde também tenha de ser fustigada da forma que tem sido. Quando este ciclo político terminar, o próximo Governo, independentemente da sua orientação política, vai dizer que tem de pagar as dívidas do anterior e vivemos assim obcecados por uma orçamentação virtual. Agora há uma questão que é óbvia, Portugal nunca teve tantas desigualdades na Saúde como tem hoje, e a situação está muito pior do que estava em 2011.” Já João Almeida Lopes, presidente da APIFARMA, considera que é impossível manter esta pressão sobre o financiamento da Saúde e é preciso equacionar que com o envelhecimento da população, a evolução da tecnologia, entre outros fatores, a saúde cada vez mais se vai posicionar como uma atividade económica que empregará muita gente e portanto não faz sentido olhar para esta realidade de uma maneira meramente economicista em que só é preciso cortar. Mais ainda quando aquilo a que se tem assistido é uma mera redução no custo dos medicamentos e mais nada. Para o presidente da APIFARMA existe uma realidade a que não se pode fugir, a de que o mundo mudou nos últimos anos, de uma forma brusca e drástica, e que portanto vamos ter que olhar de outra maneira para a Saúde a para a alocação de recursos: “Os recursos que temos serão sempre finitos e sobretudo os públicos, pelo que a sua alocação, quer seja na Saúde quer seja noutras áreas, é algo que não pode ser decisão só de alguns. No futuro, as pessoas terão que tomar maior posição sobre estas matérias, sobretudo em Portugal, onde, por exemplo, as associações de doentes têm atualmente uma presença muito discreta, mas terão de aumentar a sua influência num futuro próximo.” José Carlos Martins, administrador da José de Mello Saúde, foi também claro ao acentuar a ideia de que debatemos muito pouco o futuro porque estamos sempre pressionados pelo exercício orçamental, o que não é de agora, e portanto existe uma clara falta de visão sobre o que queremos para a Saúde quando as decisões são sempre cost oriented. Fundamental, de acordo com a opinião do administrador da José de Mello Saúde, é saber se, muito pragmaticamente, vamos ser capazes de assegurar para os nossos filhos e para os nossos netos princípios fundamentais e civilizacionais, como a universalidade de cuidados e a tendência de gratuidade da Saúde: “a resposta é que, com o máximo de objetividade possível, se não formos capazes de, ao longo de dois ou três eixos, alterar significativamente as coisas, podemos continuar a afirmar que sim, mas não garantiremos de certeza os princípios básicos. E então em situações de reconfiguração do sistema, há linhas de pensamento que são visíveis devido a grande parte dos nossos pensadores na área da Saúde serem ortodoxos e reacionários, não no sentido político do termo. Porquê? Porque qualquer alteração é logo rejeitada e vamos sempre pelo caminho mais fácil, cortar nos preços, cortar nos direitos das pessoas, mas não o fazemos explicitamente. Temos, sim, de olhar para a realidade sem preconceitos e definir o que é prioritário e quais os eixos que devemos desenvolver por forma a alterar o sistema atual que é monolítico. Nós nem sequer somos capazes de utilizar as capacidades que o país tem e não somos capazes apenas por preconceito ideológico”.

 

Cuidados de Saúde Primários

Outra das grandes questões abordadas no debate foi a dos Cuidados de Saúde Primários enquanto pilar basilar de qualquer sistema de saúde. Para Luís Pisco, vice-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), uma das questões centrais a recordar foi a de que a atual reforma nesta área que está em curso desde 2005, teve por base um documento elaborado em 1990. Ou seja, passaram-se precisamente 15 anos sobre a fase em que se desenvolveram e planearam ideias muito bem estruturadas sobre o que se deveria fazer e a sua implementação no terreno com sucesso, que é o que tem estado a acontecer, já que é uma das áreas em que Portugal tem, por assim dizer, exportado o seu modelo de sucesso para outros países, nomeadamente para o Brasil, caso das Unidades de Saúde Familiar. Daí a necessidade de ter em atenção os ciclos estruturais, o que significa que os modelos que se quiserem adotar para 2030, nesta como em qualquer outra área da Saúde, terão de começar a ser discutidos hoje. No que respeita aos Cuidados de Saúde Primários, o vice-presidente da ARSLVT deixou bem expresso quais serão as prioridades para o futuro próximo, nomeadamente: melhorar a qualidade de acesso a estes cuidados de saúde; centrar a atenção na prevenção e intervenção precoce; melhorar a gestão da doença crónica e apoiar a integração e prestação de cuidados multidisciplinares.Outra questão que mereceu a atenção de Luís Pisco, recuperando o já referido por João Almeida Lopes sobre a necessidade de maior participação das pessoas nas decisões sobre a Saúde, foi o já referido no relatório de 2010 da Organização Mundial de Saúde: “Este relatório traz explicitamente escrito que não é possível dar tudo a todos, o que, logo em Portugal, seria considerado inconstitucional. Significa isto que devia ser necessário fazer escolher sobre o que será mais importante, mas sobretudo é preciso saber quem é que vai decidir sobre o que será mais importante. Não sei se em 2020, se em 2030, mas mais tarde ou mais cedo os portugueses vão ter de ser chamados a dizer como deve ser gasto o dinheiro na Saúde. De que forma, não sabemos, mas o modelo já funciona, embora em pequenas comunidades, no Brasil. Poderá ser um começo.”

 

O cinismo da verdade

Foi na lógica do exposto por José Carlos Martins que Adalberto Campos Fernandes chamou a atenção para aquilo que é o cinismo da verdade oficial na Saúde, independentemente do Governo ou dos protagonistas em funções, quando a verdade oficial tende a disfarçar a verdade dos factos, da perceção dos mesmos: “Se tivéssemos todos a preocupação de democratizar o acesso aos cuidados de saúde, dar a todos os portugueses um médico de família, teríamos que aumentar a cobertura, e o problema é que a democracia tem custos. Logo, esta questão de darmos mais acesso à saúde sem incorrer num aumento da despesa, mesmo sendo muito poupados, pagando menos pelos medicamentos, controlando muito o comportamento dos atores e dos médicos, é uma falácia. E o contrário disto não significa necessariamente abrandamento da despesa. Significa, sim, mais desigualdade, porque quando comprimimos muito a despesa pública, apenas estamos a transferir mais encargos diretos para as famílias e, indiretamente através das famílias, para o setor privado. O que eu faço é desequilibrar a estrutura da proteção social, porque as classes ditas A e B têm sempre capacidade de encontrar pelos seus meios mecanismos alternativos, e as classes com menores rendimentos ficam autorrestritas, sem acesso a cuidados de saúde e a médicos. Há aqui um aspeto que é político, mas também é do domínio dos valores, e o problema que enfrentamos hoje é toda esta ineficácia de ação política por haver medo de escolher um caminho para o sistema de Saúde em Portugal e sobre o papel que o Estado deve ter nele.”