PORTUGAL 2030

YC7H3648COMO AJUSTAR O PREÇO DA HABITAÇÃO AO RENDIMENTO DAS FAMÍLIAS

 “Como ajustar o preço da habitação ao rendimento das famílias” foi o tema central de mais um debate do ciclo Portugal 2030, promovido pela revista FRONTLINE, que reuniu dois reputados oradores – Fernando Santo, administrador-delegado do Montepio – Gestão de Ativos Imobiliários, e Manuel Salgado, vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa – no passado dia 19 de junho, no Hotel Tiara Park Atlantic, em Lisboa.

 

Fernando Santo, administrador-delegado do Montepio – Gestão de Ativos Imobiliários, e Manuel Salgado, vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa, foram os dois oradores convidados para mais um debate do ciclo Portugal 2030, promovido pela revista FRONTLINE com o objetivo de trazer para o espaço público novas ideias, novas abordagens, mas também novas preocupações sobre o que se espera num futuro próximo. Numa abordagem crítica, mas muito construtiva, ao setor do imobiliário no nosso país, um dos aspetos relevantes que desde logo ressaltou no debate foi a convergência de opiniões expressa por duas personalidades oriundas de quadrantes diferentes, quer do ponto de vista político quer profissional, aliás, facto positivamente assinalado por muitos dos intervenientes presentes na audiência. As questões críticas também foram claramente identificadas, bem como a expressa necessidade de que é urgente mudar o atual modelo em que se inscreve o setor imobiliário, particularmente no que respeita à habitação, sob pena de se atingir uma situação muito complicada de gerir, não só por parte das famílias como também na lógica do planeamento urbanístico e na desagregação do tecido social nas cidades e nos centros urbanos. Tanto Fernando Santo como Manuel Salgado apontaram para uma urgente necessidade de uma profunda reforma legislativa no setor, uma clara aposta no mercado da reabilitação urbana e uma necessidade de serem criadas condições que tornem o mercado de arrendamento apetecível, quer por parte das famílias, quer por parte dos proprietários. Pormenor relevante foi também a constatação por ambos oradores de que este será talvez dos poucos setores em que, contrariamente ao paradigma atual, se requer mais intervenção central: “falta-nos mais Estado, um Estado diferente, mas falta”, como sublinhou o vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa.

Mudar é necessário?YC7H3948

Fernando Santo começou logo por abordar uma questão concreta ao referir que, quando queremos mudar temos de começar por mudar aquilo que já esgotou o prazo de validade, neste caso o Regulamento Geral de Edificações Urbanas, datado de 1951 e que ainda hoje se mantém em vigor. E nesta lógica continuou o seu raciocínio: “É fundamental percebermos que se queremos simplificar temos de definir o que é que queremos cortar na legislação existente, para podermos oferecer edifícios a preços muito mais baixos. Mas não é apenas a legislação de nível nacional, também temos uma proliferação de regulamentos municipais que criam mercados protegidos – o que, por exemplo, se aplica no concelho de Sintra não é válido em Lisboa, pois cada um tem as suas normas diferentes –, para já não falar em outras áreas, como seja a intervenção de entidades reguladoras e certificadoras. No que se refere à habitação, deveríamos deixar de falar em tipologias para definirmos apenas áreas de habitação, à semelhança do que já sucede com as áreas de comércio ou de serviços. Ou seja, devemos ter a possibilidade de fixar as zonas comuns e depois permitir que cada um ajuste o edificado às suas necessidades, porque na lógica de custos é fundamental reduzir substancialmente essas mesmas áreas.” Fernando Santo também chamou a atenção para o tempo necessário para pôr em prática as alterações legislativas que vierem a ser aprovadas, pois normalmente são necessários cinco a seis anos, desde a conceção do projeto até ao fim da construção e comercialização. Neste sentido, tudo o que for decidido agora tem de resultar de uma discussão alargada entre as várias áreas políticas e saberes técnicos, porque o que a realidade nos tem mostrado é que, nas últimas décadas, houve uma perca significativa de intervenção estratégica do poder político neste setor, com a sucessiva extinção de organismos e estruturas que eram fundamentais, desde a Secretaria de Estado da Habitação até ao desaparecimento do próprio Ministério das Obras Públicas, e “hoje, se quisermos resolver os diferentes problemas de forma integrada, tal como sucede numa construção, temos de falar com quatro ou cinco ministros, mais não sei quantas Secretarias de Estado, o que significa que criámos um monstro burocrático sem liderança política ou estratégica”, segundo as suas palavras. E continuando o seu raciocínio, apresentou uma análise muito concreta: “Se queremos levar as pessoas para as cidades através da colocação dos edifícios devolutos no mercado, temos de fazer uma pergunta: cumprindo todas as regras, taxas e impostos, será que o investimento a fazer na reabilitação poderá ser rentabilizado? A verdade é que com as regras em vigor dificilmente isso era conseguido, porque para atingir essa rentabilidade, e com a elevada carga fiscal aplicada às pessoas singulares através do englobamento dos rendimentos, era preciso colocar o valor das rendas num patamar tão elevado que para as famílias se tornava mais fácil comprar a habitação. Agora temos de olhar para o outro lado desta realidade: quanto é que o investimento no mercado de reabilitação provoca na redução do desemprego, no aumento da atividade económica das empresas, na dinâmica industrial associada a um setor que por cada euro investido envolve muito mais mão de obra do que a construção de uma habitação nova ou de uma autoestrada. A verdade é que o modelo vigente durante os últimos 20, 30 anos foi precisamente o contrário, um modelo essencialmente vocacionado para a construção nova com incentivos, ao contrário da reabilitação com maiores dificuldades. Se repararem, o nosso PIB começou a cair e o desemprego a aumentar à medida que a construção civil começava a declinar. Em conclusão, eu não acredito que possamos entrar em taxas de crescimento do PIB acima dos dois pontos percentuais sem uma recuperação do mercado imobiliário, mas essa recuperação não pode ser assente no modelo anterior.” Para Fernando Santo torna-se também evidente que temos de encontrar soluções em que as pessoas possam reencontrar o conceito de bairro, de apostar na coesão social e abandonar a segmentação de marketing que tínhamos no mercado imobiliário, em que pusemos as pessoas a viver em bairros determinados pelo preço do metro quadrado e do seu rendimento disponível. Ou seja, voltar a uma lógica mais low cost, com uma oferta muito mais variada e que junte estratos sociais de níveis diferentes, de modo a consolidar o tecido social nas cidades e a não levar ao seu abandono para as periferias. Por outro lado, para o antigo bastonário da Ordem dos Engenheiros, há uma outra verdade que também não pode ser ignorada, o facto de este setor ter sido penalizado de uma forma que mais nenhum outro foi: “Reparem que quando o Estado deixou de prestar serviço público nalgumas áreas, seja na saúde, na educação, na energia, entre outras, criou um sistema de parcerias público-privadas e passou a remunerar os privados pelos serviços públicos prestados. Mas no caso do arrendamento, através do congelamento das rendas, o Estado obrigou os senhorios a prestarem um serviço de cariz social, mesmo para as famílias não carenciadas, mas não retribui qualquer valor por esses serviços, pelo contrário, contribuiu de forma direta para a depreciação do património e para a ruína dos edifícios e degradação das cidades. É sobre tudo isto que temos de refletir com um interlocutor público que possa discutir uma estratégia para os próximos 10 anos, independentemente do ministério que tutela cada área. Onde queremos estar e como queremos evoluir perante a necessidade de ajustar o preço da habitação aos rendimentos das famílias.”

YC7H3923Sem investimento não há reabilitação

Na sua intervenção, Manuel Salgado começou também por clarificar algumas ideias sobre a imperativa necessidade de alterar modelos, afirmando mesmo que neste setor, hoje, “falta-nos mais Estado, um Estado diferente, mas falta”. Ou seja, que esta necessidade de ter quem pense, quem defina políticas públicas de longo prazo e seja competente, é cada vez mais evidente, porque temos a legislação cada vez mais mal feita e cada vez mais pensada para o imediato: “Eu estou totalmente de acordo com o quadro que aqui foi desenhado sobre aquilo que deveriam ser as novas políticas públicas. Acho que é essencial uma reflexão de fundo que consiga antever os efeitos das medidas que são tomadas e devo dizer que é evidente – eu recordo que em 1974 esteve cá um investigador francês com quem tive oportunidade de trocar muitas ideias e ele foi muito claro naquilo que disse: ‘a partir do momento em que vocês deixarem de financiar a pedra e passarem a financiar as pessoas, perdem completamente o controlo do desenvolvimento urbano e isto vai ser uma expansão anárquica por toda a área metropolitana’.” Segundo o vereador da Câmara de Lisboa, financiar a pedra eram os programas que existiam, como os planos integrados, e citou o exemplo do Bairro dos Olivais como referência de formas de desenvolvimento da cidade muito bem estruturadas e que permitiam verdadeiras parcerias, porque no fundo o Estado tinha os terrenos mas a construção era feita pelos privados: “Mas tudo isto se alterou negativamente a partir do momento em que se liberalizou o crédito à compra de casa própria, e os grandes beneficiários foram os bancos, não há que ter dúvidas: o banco ganhou na compra dos terrenos, ganhou porque financiou a construção e ganhou porque financiou a compra de casa própria. Foi sempre o grande beneficiário em todo este processo.” Por isso, defendeu Manuel Salgado, torna-se premente alterar este modelo e ele pode ser alterado com uma maior intervenção ao nível da regulação por parte da Administração Pública, mas com regras bem definidas e claras num quadro de referência de políticas públicas. E exemplificou: “Numa intervenção que fiz recentemente onde comparei a atual lei dos solos com a lei dos solos de Marcelo Caetano, dou 10 a zero a favor da lei do tempo de Marcelo Caetano, porque é muito mais eficiente, muito mais bem feita, muito mais clara do que a legislação atual.” Pegando noutra questão central do debate, a da reabilitação urbana, o arquiteto confessou que o grande problema que tem sentido diz respeito à falta de investimentos, porque na realidade não há dinheiro. E de realidade em realidade, a sua conclusão fria e calculista não impera pelo otimismo: “Há aqui uma realidade a que nós não podemos fugir: por muitos e bons anos nós vamos ter muitas casas vazias por ocupar. Agora, entre tê-las vazias por ocupar nas periferias longínquas ou no centro das cidades, é, do ponto de vista da economia global, preferível ocupá-las no centro porque é mais barato viver no centro, por questões de custo de energia, de deslocações, de otimização de infraestruturas que já existem, entre outros fatores. Este é um aspeto relevante, mas agora, passando necessariamente à frente, é preciso também ver, por outro lado, que a própria lei das rendas estabelece, em caso de desacordo com o senhorio, uma forma de calcular a renda – 1/15 avos do valor patrimonial –, o que pressupõe que o valor do terreno é um valor baixo. Mas a verdade é que é difícil encontrar habitação em Lisboa que tenha uma renda acessível e ajustada à taxa e esforço que pode ser exigido às famílias, nomeadamente às famílias da classe média e aos jovens casais. E por isso é preciso encontrar aqui mecanismos que permitam restruturar um mercado de arrendamento com rendas acessíveis mas sem entrar num regime de subsidiação.” Para Manuel Salgado torna-se assim evidente que a multiplicidade de fatores envolvidos no setor imobiliário exige, de facto, muita ponderação na atuação política, mas igualmente muito saber técnico pela transversalidade de repercussão dos seus efeitos, quer nas famílias, quer nas empresas, quer nas cidades. E concluiu a sua intervenção: “Agora temos a perfeita consciência de que as nossas cidades só serão sustentáveis se voltarmos a ter um programa assente no arrendamento, numa primeira fase com reabilitação urbana, mas esta não será suficiente, não chega. Precisaremos à mesma de construção nova.”