PORTUGAL 2030

Captura de ecrã 2017-05-29, às 13.07.52UMA PERSPETIVA ATUAL DA ONCOLOGIA EM PORTUGAL

Um debate alargado sobre o estado atual e as perspetivas de evolução da doença oncológica em Portugal foi a proposta da revista FRONTLINE para mais uma iniciativa Portugal 2030, que teve lugar no Hotel Epic Sana, em Lisboa.

Sob o tema genérico “Oncologia em Portugal”, o debate contou com a presença de dois reputados oradores, Fernando Leal da Costa, ex-ministro da Saúde e médico no IPO – Instituto Português de Oncologia, e Nuno Miranda, diretor do Programa Nacional das Doenças Oncológicas e igualmente médico no IPO. A primeira intervenção coube a Nuno Miranda, que começou por abordar a questão da relação entre a crise económica dos últimos anos e o aumento da mortalidade por doença oncológica. Apesar de alguns números traçarem um panorama muito apreensivo, nomeadamente estatísticas que apontam para um crescimento de 260 mil mortes por causas relacionadas com o cancro em 75 países ocidentais, entre 2008 e 2010, na União Europeia, segundo aquele especialista, não se pode aferir nenhuma relação direta neste sentido, e mesmo em Portugal – um dos países mais afetados pela crise económica em áreas como a Saúde, a Segurança e a Educação – a situação de evolução do cancro revelou alguma estabilidade. Se olharmos paras as principais conclusões dos estudos feitos nestes anos, referidas por Nuno Miranda, é importante reter alguns aspetos que apontam até para uma evolução mais otimista sobre a prevenção da doença oncológica, nomeadamente que o acesso aos tratamentos do cancro aumentou com a incidência da doença; que a taxa de mortalidade revelou mesmo uma tendência de decréscimo e, não menos importante, que os serviços nacionais de Saúde nos países com cobertura universal se têm revelado um importante fator de resiliência em relação à doença. No entanto, e ainda segundo o diretor do Programa Nacional das Doenças Oncológicas, uma questão que merece reflexão e que se tornou relevante neste período em análise em Portugal foi a da adesão aos rastreios, concretamente do cancro da mama, do colo do útero e do cólon: “apesar de o número de rastreios ter mesmo aumentado, constatámos que a taxa de adesão das pessoas a estes rastreios caiu significativamente nos anos da crise, o que nos leva a procurar explicações talvez a nível sociológico, onde a perda do emprego, as dificuldades económicas das famílias, etc., mexem com o próprio valor simbólico da vida e levam as pessoas a relegar para segundo plano as preocupações com a sua saúde e bem-estar”, segundo as suas palavras. Já Fernando Leal da Costa centrou a sua intervenção num quadro mais geral da evolução da doença oncológica em Portugal, deixando muito claro o alerta para o facto de, apesar de os dados atuais traçarem uma perspetiva mais otimista no combate ao cancro e mesmo de Portugal ocupar um lugar no primeiro quartil na avaliação da doença oncológica na União Europeia, a par de outros sete países com a taxa de mortalidade mais baixa, as projeções apontam um agravamento muito significativo da situação, principalmente relacionado com o aumento da esperança de vida: “se olharmos para o futuro, veremos o cancro a aumentar significativamente, mas o maior problema que enfrentaremos não será só o do cancro, mas sim o da sustentabilidade de todo o sistema de saúde”. Para Leal da Costa existem dois fatores imperativos para se conseguir atingir um nível de sustentabilidade nos gastos de saúde, que ocupam a base da pirâmide, concretamente um significativo investimento na área da promoção da saúde e prevenção da doença e concretização das reformas estruturais atempadamente.   E neste contexto ilustrou, a título de exemplo, a situação que se vive Portugal no que respeita à pirâmide etária dos médicos, com uma lacuna, que se agrava todos os anos, de existência de profissionais de saúde entre os 35 e os 55 anos: “se não acautelarmos este problema num futuro próximo, a cinco, seis anos, já começaremos a ter problemas para preencher adequadamente as equipas médicas, para além do outro grande problema do nosso país resultante da excessiva concentração de profissionais de saúde na faixa litoral em detrimento do interior do país”, de acordo com as suas palavras. Outro alerta deixado por este médico foi também a necessidade de existir um grande controlo e uma redução significativa sobre o que denominou de cuidados de saúde inapropriados, nomeadamente a nível do Serviço Nacional de Saúde, não só na lógica de contenção de custos, mas também como fator determinante na promoção da eficiência dos sistemas de saúde, independentemente da sua natureza.

Nuno MirandaCaptura de ecrã 2017-05-29, às 13.48.27

Crise económica versus óbitos por cancro

A crise da dívida soberana, na zona euro, foi particularmente severa em Portugal, com a adoção de significativas medidas de austeridade. Como parte do programa de resgate da troika, foi imposto um corte na despesa pública até 2014, com especial repercussão nos cuidados de Saúde, Educação e Segurança Social. A relação entre óbitos por cancro e crise económica já foi demonstrada, com vários mecanismos subjacentes, a saber, diminuição dos gastos em saúde, aumento do desemprego, aumento das desigualdades, menor acesso a cuidados especializados e diagnósticos tardios. Num artigo publicado por Mahiben Maruthappu no The Lancet Oncology, analisando a evolução de 75 países, foi atribuída à crise de 2008-2010 um excesso de mortalidade por cancro de 260 mil casos, com particular ênfase para cancros potencialmente tratáveis, como as neoplasias da mama, da próstata ou do cólon. No mesmo artigo, era apontado como fator de resiliência significativo os sistemas de saúde com cobertura universal. Analisámos os dados do controlo do cancro em Portugal, nos últimos anos, para avaliar o efeito da crise económica. O número de participantes nos programas de rastreio aumentou de forma constante no cancro de mama, mas houve uma diminuição significativa no programa de cancro do colo do útero. Em ambos os programas houve uma diminuição da taxa de adesão em 2013 e 2014, com uma recuperação significativa em 2015. O programa de rastreio do cancro colorretal tinha ainda uma taxa de cobertura muito baixa, mas a diminuição da taxa de adesão foi também observada em 2013 e 2014. O sistema de saúde foi capaz de acomodar as crescentes necessidades cirúrgicas oncológicas. O tempo de espera para cirurgia oncológica não sofreu alterações significativas. Os gastos do Sistema Nacional de Saúde em medicamentos oncológicos foram estáveis de 2012 a 2014, com um aumento significativo na quantidade de medicamentos dispensados. Houve um desvio significativo da despesa em medicamentos para fármacos inovadores, acomodada pela negociação de preços e a introdução de alguns genéricos e biossimilares. Até 2015, as taxas de mortalidade padronizadas por cancro, tanto para a população total quanto para os pacientes com menos de 65 anos, diminuíram de forma estável. Isso foi observado em homens e mulheres. O Sistema Nacional de Saúde funcionou como elemento atenuador dos efeitos da crise económica. Concluímos que, na presente análise, o único efeito significativo observado foi a diminuição das taxas de adesão aos programas de rastreio, e notavelmente estas já foram recuperadas em 2016. Estes indicadores devem ser monitorizados nos próximos anos.

Captura de ecrã 2017-05-29, às 13.47.21Fernando Leal da Costa

Como será tratar o cancro em Portugal?

Assistimos a um fenómeno muito preocupante, o do aumento de novos casos de cancro e, em simultâneo, haver a acumulação de pessoas afetadas por cancro, algumas curadas e outras doentes. A incidência, assim se denomina a taxa de novos casos por período de tempo, não para de aumentar, ao mesmo tempo que a prevalência, o número total de casos no momento em que são contados, também vai crescendo. É isto que resulta da junção de fatores que determinam o aparecimento de novos cancros, de que a idade e o tabaco são os mais importantes, com a emergência de melhores terapêuticas que têm prolongado a longevidade das pessoas afetadas por cancro, melhorado a qualidade de vida dos doentes, que agora são encarados como “crónicos”, e, já podemos dizê-lo, curar um número significativo de casos de neoplasias malignas. A primeira afirmação sobre a potencial curabilidade de um cancro operado precocemente, o da mama, terá sido feita por Rodman em 1908. Desde aí, o valor da prevenção secundária, a dos rastreios, tem sido reforçado ou contestado, gerando uma imensa bibliografia que, no entanto, não serve para desmistificar o valor do diagnóstico precoce, se com tratamento consequente, da maioria dos cancros. Cirurgia, radioterapia e quimioterapia têm evoluído muito. Assiste-se ao crescimento da imunoterapia do cancro, inicialmente postulada de forma segura em 1959, por Bergen, já com a emergência de produtos biossimilares seguros, tão eficazes como os “biológicos” originais, mas mais comportáveis embora ainda longe de serem baratos. Com estes agentes, usados isoladamente ou em combinação, e com outros medicamentos molecularmente mais inteligentes, indo ao cerne da maquinaria genética e molecular do cancro, poderemos ter mais curas, menos efeitos secundários e, assim o desejamos, uma diminuição das sequelas inerentes aos tratamentos “antigos”. Talvez ainda estejamos longe da cura da maioria dos cancros e, seguramente nunca os erradicaremos. Mel Greaves, um dos maiores hematologistas de sempre, em 2014, afirmou que não deveríamos insistir em tentar curar os cancros com os agentes disponíveis. Com uma visão darwiniana, que partilho, alertava-nos para a emergência de resistências celulares, tal como temos assistido com os micro-organismos. Independentemente destas questões, a verdade é que teremos de nos concentrar na prevenção, através da modificação de hábitos de vida e na deteção precoce, ao mesmo tempo que vamos ter de fazer boas escolhas tecnológicas, no que ao diagnóstico e tratamento disser respeito. Há processos que permitem identificar quem beneficia mais de determinados tratamentos. Com esse conhecimento, da pessoa e do seu cancro, podemos poupar toxicidade, dinheiro e obter melhores resultados. É por isso que temos de concentrar o que tem de ser concentrado, nomeadamente equipamento sofisticado de diagnóstico, algum dele apenas justificado para um centro em todo o país, e dispersar o que deve ser mais acessível, como sejam capacidades de intervenção cirúrgica e alguma radioterapia. Mas não nos iludamos com demagogias políticas que podem ter a tentação de vender a ideia de que “próximo” é sempre bom. Num mundo em que o preço das novas tecnologias nem sempre acompanha o seu valor terapêutico acrescentado, é preciso saber fazer escolhas e, ao mesmo tempo, dotar os médicos e os doentes da capacidade de escolher o melhor, particularmente em contexto de recursos tendencialmente escassos. Em qualquer caso, nunca poderemos consentir em que haja poupanças por adiamento de diagnósticos ou tratamentos, tal como não se pode aceitar que se esbanje o que tem de chegar a todos. Seja como for, será sempre inegociável um SNS que se quer universal, idealmente geral e tão gratuito quanto possível. Até lá, se ainda fuma, deixe de o fazer. Ajuda-se a si, a todos nós e aos seus filhos que, no fim, ficarão cá para pagar a dívida da saúde. O cancro nunca é só de quem dele padece.