Existe mercado de arrendamento?
Garantir o acesso a uma habitação condigna é, em todos os países, um problema complexo, mas os mais desenvolvidos têm vindo a optar por políticas que permitam uma oferta equilibrada entre a compra para habitação própria e o arrendamento, acima dos 40%, mas com apoio do Estado às famílias de menores rendimentos para arrendarem habitações privadas, não atribuindo aos senhorios essa obrigação.
Em Portugal as políticas de habitação fomentaram apenas o acesso à habitação através da compra, obrigando os senhorios a assumir as funções sociais do Estado para com os inquilinos, em função do ano do contrato, idade e outras condições. Como consequência, nos censos de 2011, o arrendamento representava menos de 20% do parque habitacional e 73% das famílias viviam em habitações próprias, mas endividadas. Em 2017 o crédito à habitação ainda ultrapassava os 98.000 milhões de euros e nos últimos 20 anos não houve promoção de novos programas públicos de habitação, mantendo-se nos 120 mil alojamentos, o que representa apenas 2% das habitações do país. As novas gerações têm de facto um grave problema para aceder à habitação nas cidades mais atrativas. Era suposto termos aprendido alguma coisa com as consequências dessas políticas, bem evidentes durante a crise financeira recente, mas parece que não, pois assistimos à repetição dos mesmos erros, com bastante mais demagogia e ignorando a realidade, como se estivessem de volta os tempos do PREC. De facto, o mercado imobiliário, depois de ter desaparecido das agendas políticas desde o início deste século, apenas surgindo esporadicamente quando milhares de famílias deixaram de pagar os empréstimos bancários, voltou de novo à ordem do dia num confronto político que nada ajuda à solução, pelo contrário, o permanente ataque aos proprietários e senhorios só acentuará o défice entre a procura e a oferta, fazendo aumentar os preços.
Uma abordagem mais séria
Sem racionalidade e uma abordagem séria que permita equacionar o problema e definir estratégias de acesso à habitação – de forma sustentável para várias gerações e não apenas para o dia de hoje –, continuaremos a fingir que temos soluções, mas impossíveis de alcançar. A oferta de habitação para arrendamento resulta mais da confiança e da avaliação de risco do que da ausência de capacidade para investir, e os decisores políticos deveriam saber que esta simples perceção é essencial para a resolução do problema. Nunca como atualmente os depósitos a prazo tiveram taxas tão baixas, praticamente nulas, e as outras alternativas financeiras para aplicação das poupanças continuam a levantar dúvidas depois do que aconteceu nos últimos anos. Este contexto e o elevado nível de liquidez são condições excecionais para se aumentar de forma muito significativa o investimento em habitação para arrendamento. Mas o discurso político e as intervenções das associações de inquilinos continuam em sentido contrário e com uma agenda mediática que atribui aos senhorios e proprietários a responsabilidade por terem que oferecer habitações às famílias, com rendas baixas, protegendo inquilinos com mais de 65 anos. O dever de proteger as famílias com menos rendimentos ou com mais idade é uma obrigação do modelo social que construímos, e que tem sido um dos maiores avanços civilizacionais da Europa face ao resto do mundo. Mas não pode atribuir aos senhorios o que compete ao Estado, com a agravante de provocar outro tipo de injustiças, pois há muitos inquilinos que, tendo mais de 65 anos, não têm necessidade de proteção social, porque têm rendimentos e património próprio suficientes para não constituírem um ónus sobre os seus senhorios, muitos com menores rendimentos.
Maior atenção do Estado
Em sentido contrário encontram-se milhares de pessoas de idade, com dificuldade de locomoção, que tendo beneficiado de rendas baixas e congeladas durante dezenas de anos estão hoje reféns dos pisos onde habitam, sem as mínimas condições de habitabilidade e sem elevador para chegarem à rua. São os mais carenciados e os que deveriam merecer a maior atenção do Estado Social, mas não, basta inscrever na lei que a renda continua muito baixa e que não podem ser despejados, para as consciências sociais ficarem tranquilas. É mesmo incompreensível, quando comparamos a forma como a legislação trata o arrendamento com o que sucede noutros setores, como são os excelentes exemplos do Sistema Nacional de Saúde, do Sistema de Ensino, da Segurança Social, em que o Estado assume os custos tendencialmente gratuitos. Depois inventaram o sistema das parcerias público-privadas, em que o Estado paga ao setor privado os serviços prestados, e ainda um sistema claramente desequilibrado para os contribuintes, em que o Estado concessiona a construção e o fornecimento de bens pagando rendas excessivas, como são os casos amplamente divulgados. O que se exigiria para o Estado assumir o seu dever no apoio ao acesso ao arrendamento é uma pequeníssima percentagem do que paga anualmente em todo este tipo de fornecimento de bens e serviços por privados.
Discriminação do mercado
Não encontro uma explicação racional, mas apenas ideológica, para a discriminação negativa do mercado de arrendamento, pois as consequências são de todos conhecidas: (i) degradação do parque edificado nos centros das principais cidades durante os últimos 50 anos; (ii) desertificação dessas zonas, que passaram a ser as menos valorizadas; (iii) ausência de mercado de arrendamento com oferta de novas habitações; (iv) os senhorios optaram por outras alternativas arrendando frações de habitação para escritórios. Cerca de 80% dos escritórios instalados em Lisboa localizam-se em frações de habitação com menos de 200 metros quadrados, o que poderá corresponder a mais de 20 mil alojamentos, se tivermos em conta que a área estimada de escritórios em Lisboa é de 4,1 milhões de metros quadrados. Os proprietários encontraram uma oportunidade para oferecer áreas para escritórios em vez de terem que assumir as funções sociais do Estado. As construções novas foram destinadas à venda, com o Estado a financiar a bonificação de juros para a aquisição de habitação própria com o valor médio anual de 281 milhões de euros, entre 1987 e 2011, em vez de apoiar as rendas das famílias mais carenciadas. Quando se impõem sistemas injustos e se condiciona o uso da propriedade sem expropriação ou justa compensação, o resultado é eliminar a oferta nova que poderia surgir, e a prova é que surgiu, e em quantidade, quando o turismo e o alojamento temporário permitiram novas alternativas para o arrendamento, face à solução tradicional.
Reabilitação de edifícios
A globalização e o turismo explicam as razões que levaram a que nos últimos dois anos se registasse um significativo investimento na reabilitação de edifícios degradados e devolutos (cerca de 65% do alojamento local está em habitações anteriormente devolutas e em prédios degradados). Em termos comparativos, os estrangeiros descobriram um país e cidades interessantes para viver, com oferta de edifícios a preços baixos, face a outras capitais. Os mesmos edifícios que as políticas públicas e os nacionais sempre desvalorizaram, criando a desertificação das zonas históricas. Da mesma forma que Garrett McNamara nos levou a ver as maiores ondas do mundo na Nazaré, que sempre existiram, mas sem esse estatuto, também os turistas nos levaram a valorizar o que foi desprezado nos últimos 50 anos, induzindo o interesse em viver nessas zonas. Em resposta, os investidores e os proprietários, porque confiam na procura, passaram a promover uma oferta adequada. Mas os velhos preconceitos de alguns políticos, reféns de soluções ideológicas, iniciaram a destruição deste novo percurso, sem, contudo, apresentarem alternativas credíveis. Altera-se o regime de arrendamento de 2012, o regime fiscal, limita-se o uso da propriedade mantendo os senhorios a exercer funções sociais sem qualquer compensação. E por fim surgem os habituais oportunistas a condenar o facto de existirem habitações devolutas, como se, num Estado de Direito, que respeita a propriedade privada, os proprietários que pagam os impostos sobre o seu património não pudessem decidir sobre o mesmo. Há um conjunto de pessoas que defendem a política dos cucos, pois em nada contribuem para fazer os ninhos, mas depois de feitos por outras aves ocupam os mesmos como se fossem seus. A continuar este modelo, haverá cada vez menos habitações para arrendamento tradicional, e as que existem terão preços cada vez mais elevados, prejudicando-se assim todos aqueles que necessitam de habitação. Há um ditado popular que diz que “não é com vinagre que se apanham moscas”, mas parece que muitos políticos e associações de inquilinos querem continuar a espalhar vinagre à espera do milagre de se transformar em mel.