JUSTIÇA DESPORTIVA E SE O “CASO MATEUS” FOSSE HOJE?
Corria o mês de agosto de 2006. Mais um “verão quente” no futebol português, jogado fora das “quatro linhas”: o Gil Vicente Futebol Clube descia de divisão, da Primeira Liga para a Liga de Honra de Portugal, por força de uma sanção disciplinar aplicada pelo Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol.
Inconformado com a decisão, o clube de Barcelos intentou, de pronto, num Tribunal Administrativo, uma ação administrativa especial para impugnação do acórdão do Conselho de Justiça, tentando, pois, pela via do contencioso administrativo, reverter a despromoção imposta nos órgãos próprios da “justiça desportiva”. O processo assumiu foros mediáticos de grande monta. Tornou-se difícil passar ao lado do que veio a ser conhecido como o “Caso Mateus”. Volvidos 10 anos, em junho de 2016, eis que surge, enfim, uma primeira decisão judicial. Sim, leu bem: 10 anos. Ora, como diria o cantor, “Dez anos é muito tempo!”. Por diferentes razões, não me deterei aqui sobre o mérito da questão – quem tem ou não razão – mas unicamente na questão da morosidade da justiça administrativa, in casu aplicada ao futebol. Nesse exercício procurarei traçar um cenário imaginário em que o começo do “Caso Mateus” seria não no ano de 2006, mas sim no corrente ano de 2016. Com um dado novo: diferentemente de 2006, está hoje em funcionamento o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), “entidade jurisdicional independente” com sede no Comité Olímpico de Portugal.
A questão da morosidade
Vejamos a questão da morosidade. Não se justifica uma demora de 10 anos para uma decisão de primeira instância. Não se trata de um processo com muitas partes. Tampouco envolve muitas testemunhas. E a questão jurídica controvertida, a dado passo, deixou de o ser: na verdade, gradual e sucessivamente, diferentes tribunais superiores aludiram a uma “linha de entendimento jurisprudencial e doutrinal que se tem por firme”, a uma “matéria que já foi objeto de elaborada e exaustiva apreciação jurisprudencial em diversos arestos”; a uma “posição jurisprudencial uniforme” e “pacífica”. Se tal duração excessiva do processo consubstancia, ou não, uma violação do direito do Gil Vicente Futebol Clube a um processo equitativo, tal como previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Conselho da Europa/Estrasburgo) o decidirá, no quadro de uma queixa que, conforme deu eco a imprensa, lhe foi submetida. Mas uma coisa é certa: passaram mesmo 10 anos e os calendários da justiça administrativa não se compaginam com os calendários desportivos. Também por isso a criação do TAD: procura-se um mecanismo alternativo aos tribunais estatais/comuns para dirimir os “litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto”. Pretende-se uma justiça mais célere (já conseguida), mais especializada (idem) e tendencialmente mais barata (aqui, infelizmente, o quadro normativo conduz, em regra, ao oposto…).
Tribunal Arbitral do Desporto: competências
Ora uma das competências específicas do novo TAD é, precisamente, conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações desportivas no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de disciplina. E esse recurso ao TAD é feito no âmbito da “arbitragem necessária”, ou seja, não há como escapar: o TAD é o caminho. Assim sendo, se o “Caso Mateus” começasse agora, em 2016, caberia no escopo de atuação do TAD – está em causa a aplicação de uma sanção disciplinar aplicada por uma federação desportiva dotada de utilidade pública desportiva, no exercício de um poder público (o poder disciplinar). Hoje, muito seria diferente. Desde logo, da decisão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, o Gil Vicente Futebol Clube recorreria diretamente para o TAD, “saltando” o Conselho de Justiça, isto é, não sendo necessário o prévio esgotamento das vias jurisdicionais internas federativas. Por outro lado, caso o Conselho de Disciplina não viesse a proferir a sua decisão final em 45 dias (ou 75, se fundamentada a “complexidade da causa”), o TAD poderia avocar o processo, obstando a delongas. Acresce que a decisão do colégio arbitral do TAD só seria passível de recurso, para o Tribunal Central Administrativo, se as partes não concordassem em recorrer para a câmara de recurso do TAD, caso em que renunciariam expressamente ao recurso da decisão que viesse a ser proferida. E mesmo a existir recurso para o Tribunal Central Administrativo, demonstrando estar-se perante um processo urgente, o recurso teria efeito meramente devolutivo (que não suspensivo) e a decisão teria de ser conhecida no prazo de 45 dias [por mim, na lógica arbitral e da leitura constitucional que falo do acesso ao direito e aos tribunais/tutela jurisdicional efetiva, nem sequer deveria haver hipótese de recurso das decisões do TAD, mas o Tribunal Constitucional assim não o entendeu…].
E se fosse hoje?
Face ao exposto, é mister concluir que, se fosse hoje, nunca esperaríamos 10 anos por uma decisão de primeira instância (a SAD do Belenenses, contrainteressada, já anunciou a interposição do recurso, pelo que até transitar em julgado somar-se-ão ainda muitos outros dias…). Teríamos, outrossim, seguramente, um prazo substancialmente inferior para uma decisão final, devidamente executada. Dirão os “detratores” do TAD – que os há – que um caso não é suficiente para atestar a necessidade, as vantagens e a qualidade do TAD. Mas não conseguirão desmentir o óbvio: para o desporto vale sempre mais um TAD, por mais “imperfeito” que possa ser (e eu não o vejo assim), do que os tribunais estatais/comuns, por mais qualidades que se lhes possam apontar.