CARLOS MINEIRO AIRES

O CARÁCTER DO SER HUMANO

O país foi subitamente despertado para uma inusitada onda de assassinatos de mulheres, com origem em episódios que, entretanto, se passaram a generalizar como “violência doméstica”, independentemente do local onde o crime e a violência são praticados, e no último caso, quer seja de forma ocasional ou continuada.

Nada que não se soubesse ou de que não tivéssemos conhecimento, porquanto é prática antiga e desde tempos ancestrais que a cultura portuguesa interiorizou a aceitação deste tipo de violência, que não é só exercida sobre as mulheres, mas sobre toda a família. Também não se trata de um comportamento associado a classes menos educadas ou desfavorecidas, porque é independente do seu nível de vida e ocorre em todos os estratos sociais, nem ao género, pois, ainda que em menor escala, incide sobre os próprios homens e, pior, sobre crianças e idosos indefesos e fragilizados. Enfim, uma inqualificável realidade que só nos pode envergonhar. A nossa sociedade, ainda muito marcada por algum marialvismo, também se habituou a desculpar tudo o que tenha a ver com ciúme e adultério, sobretudo no caso do homem, sendo generalizada a aceitação de que a defesa da honra deve estar acima de todas as razões e juízos. Chegamos a situações de casais, desde há muito separados, em que o homem desde logo arranjou nova companheira, mas não aceitou que a anterior, passados meses ou anos, decidisse refazer a vida, e como “proprietário original” arroga-se no direito de exigir explicações e defender a “usucapião”.

 

Combate necessário

Sendo inquestionável a necessidade de encetarmos um sério combate a este comportamento e garantirmos proteção às vítimas e potenciais vítimas, é um tema que carece de um enquadramento aprofundado das verdadeiras razões e motivações que lhe estão subjacentes. Questões financeiras e de dependência económica, questões afetivas e a vontade de garantir a todo o custo a solidez de um lar irrecuperável, silêncios sociais para evitar a crítica de terceiros, são, entre muitas, razões subjacentes que não serão difíceis de encontrar, muito embora o cerne da questão, o carácter mais ou menos violento e o descontrolo emocional da raça humana, muitas vezes inesperado, seja a principal causa. Agora, finalmente, parece existir acordo para que políticas de proximidade sejam implementadas, que resultarão sobretudo nos casos já conhecidos, persistindo a dificuldade de evitar ou detetar previamente novos casos. Aqui entronca a questão da justiça e da punição exemplar como medida drástica e eficiente para, dentro de determinados limites, criar receios aos que prevaricam. Salvaguardadas as devidas distâncias, e apenas falo no assunto porque julgo ter produzido resultados, a questão dos maus tratos em animais conduziu à aplicação de penas muito severas e à mediatização de alguns casos que permitiram alertar a sociedade e desmotivar os potenciais agressores, embora a sua total eliminação também seja uma questão cultural e educacional. Uma justiça exemplar e desincentivadora e a questão da proteção às vítimas são, pois, cruciais para este urgente combate, que não será fácil.

 

Justiça para todos

A justiça é exercida por homens e cada homem tem a sua forma de pensar, os seus padrões religiosos, culturais e éticos, podendo até haver situações em que já sentiram na pele as mesmas situações ou razões, o que por vezes pode condicionar a clarividência dos juízos. Sem dúvida alguma que o adultério, sobretudo se for praticado no feminino, parece colher a compreensão e o perdão social coletivo para com o “lesado”, para não utilizar a designação da gíria popular. Este acrescido problema, que parece desproporcionado, pasme-se, já há mais de um ano tinha motivado a intenção de ser criado um observatório para analisar as decisões judiciais em matéria de violência doméstica ou de género. O Conselho Superior da Magistratura teve razões para avaliar o teor das decisões dos juízes e pretendeu garantir ações de formação para os que delas necessitassem, embora pessoalmente não acredite ser possível mudar as mentalidades.  A crer na fonte onde obtive a informação, a decisão resultou de um acórdão “que recusou agravar a pena de um homem que agrediu a mulher com uma moca com pregos por ela ser adúltera”. Mais grave do que estes episódios que fragilizam ainda mais a já pouca confiança que os portugueses têm na sua justiça, a questão do assassinato de mulheres e idosos em enquadramentos familiares ou domésticos é uma péssima imagem que perpassa no estrangeiro, colocando Portugal no ranking dos países que nós próprios designamos por atrasados ou subdesenvolvidos e que criticamos diariamente, quando nestes aspetos estamos em exata paridade. Olhemos, pois, para as razões sociais, para os constrangimentos económicos e para as reais causas e procuremos atuar urgentemente. Sem colocarmos em causa os valores, comecemos por mudar as mentalidades, as barreiras religiosas baseadas em entendimentos medievais e por assegurar que efetivamente temos quem nos ajuíze e defenda com total isenção moral e sem preconceitos ou condicionamentos subjetivos. Possivelmente, nem todos estaremos preparados para o exercício de determinadas profissões que nos limitam por princípios educacionais de natureza ética e moral. Se estas questões se colocam nas áreas tradicionais, como engenheiro tenho de alertar para os problemas que se levantarão no campo das tecnologias (caso, por exemplo, dos desenvolvimentos biotecnológicos), mormente nas áreas ligadas à génese e às manipulações científicas no corpo humano. A ética e a moral deverão prevalecer sobre a manutenção científica da vida realizada a qualquer custo? Ou também estaremos confrontados com um conceito de adultério da criação e dos divinos destinos? É este o passo coletivo que falta para sairmos da noite medieval e do obscurantismo e entrarmos no caminho da ciência e da aceitação das mudanças. Ou não, conforme a opção de cada um…