ROGÉRIO ALVES

ARfgdhSÓ NOS RESTA A ÁGUA BENTA

A Constituição é tratada, respeitosamente, como a lei fundamental, o diploma angular do sistema jurídico. Nela se concentram os bons princípios, aqueles valores que definem a qualidade que queremos ter no Estado.

Em março deste ano completei 30 anos de exercício ininterrupto da advocacia. Dez anos é muito tempo, como nos diz o Paulo de Carvalho. São muitos dias, muitas horas, a cantar, acrescenta. Ora, como diz o povo, quem canta, seus males espanta, pelo que um decénio assim será sempre de intensa profilaxia. Já o triplo do tempo a advogar não produz tais efeitos benfazejos. Mas se é verdade que não enxota os males, deixa, porém, margem para algum espanto. Falo de um espanto que é substantivo, daqueles que nos deixam admirados, e não o espanto do verbo espantar, aqui então tomado no sentido em que leva as coisas para longe, rechaçando-as e afastando-as de nós, tal qual como a música faz ao mal. E sabem o que me espanta? O profundo desprezo a que são votados os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos, nesta nossa era a que Vargas Llosa chamou, em obra recente, a civilização do espetáculo. É verdade. Isso causa-me espanto. Jamais pensaria que, em pleno século XXI, espezinhássemos, de formas tão cruéis, o que levou tanto tempo e tanto sangue a tornar lei. Deixem-me dar-vos um exemplo comezinho para ilustrar o que vos digo. Retiro-o da nossa Constituição.

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A Constituição é tratada respeitosamente como a lei fundamental, o diploma angular do sistema jurídico. Nela se concentram os bons princípios, aqueles valores que definem a qualidade que queremos ter no Estado. Talvez o que alguns dos meus queridos leitores não saibam, é que é lá, na Constituição, que habita o famosíssimo princípio da presunção de inocência. Se derem uma vista de olhos ao número 2 do artigo 32.º, lerão, com espanto igual ao meu, que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. Perguntar-me-ão, presumo eu: ”Ai presume? Mas onde?” É que em Portugal não será seguramente. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, já Sophia nos dizia. Vamos lá a ver: para que um princípio vigore, mesmo que incrustado na Constituição, alguém tem de o exercitar. Senão correrá o risco de cair em desuso, morrendo de morte natural, ainda que sem que lhe declarem o óbito e o continuem a tratar como se vivo fosse. Ora, quanto à presunção de inocência, verifica-se o óbvio: é que só existirá, no plano da realidade, se alguém presumir de acordo com o mandamento. Como poderá sobreviver a simpática presunção na ausência de presumidores ativos? Convido a um pequeno exercício a fazer junto dos vossos amigos e conhecidos. Pegue-se numa notícia de jornal que aluda a um crime e ao seu autor. Uma coisa do tipo, A. é suspeito de desviar chorudas verbas do banco B. em proveito pessoal. Ou uma coisa menos de colarinhos alvos, do tipo, C., enraivecido por questões de condomínio, espanca o vizinho e vai, serenamente, passear o cão; pense-se que os visados ainda nem acusados foram e podem nem sequer vir a sê-lo; assegure-se, para manter a pureza do teste, que, entre os interlocutores, ninguém conhece os casos noticiados; que presunção vencerá no grupo? A de que se está perante criminosos, ou, como mandaria a Constituição, face a potenciais inocentes? Como passaremos a falar do Sr. A? Não será como aquele finório que desvia (rouba, diremos) dinheiro? E como apodaremos o Sr. C? Não será como aquele tresloucado que bate nos vizinhos? Será com certeza. Isto sem embargo do pudor com que, num estilo até algo sarcástico, os temas são tratados no plano comunicacional. Teremos, por regra, a imprensa mais comedida a falar-nos do alegado desfalque, que, alegadamente, o Sr. A. fez no alegado banco; já no que ao Sr. C. respeitar, não só ele, como o próprio vizinho, as lesões deste e até o canídeo, serão, igualmente e apenas, alegadas e alegados.

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Nem só na política existe o politicamente correto. Mas a pudícia da linguagem não trava o essencial da mensagem. E nós, recetores, estamos irremediavelmente formatados para a presunção de culpa e não para aquela para a qual a Constituição gostaria que estivéssemos. Esta predisposição inconstitucional (passe a expressão) é o terreno dócil e arável por onde o legislador vai desmantelando as garantias do processo penal. Não tenha ilusões meu caro leitor. Quando ouvir dizer que o problema do funcionamento da justiça nasce da abundância de recursos e que eles, os recursos, entopem a marcha dos processos, saiba que, ao longo destes 30 anos, mais se não fez do que, gradualmente, diminuir, dificultar e encarecer as possibilidades de recorrer. Desconfie, sempre, quando ouvir hosanas à consagração legal do crime de enriquecimento ilícito. Perceba que as louvaminhas à infração que se pretende consagrar, tendo sucesso, colocariam nas mãos de um Estado preguiçoso e com tiques securitários, uma forma de dar por provado o que não, de outra forma, consegue provar. E não se iluda, por favor, quando lhe vierem dizer que tudo isto, e o mais que aí virá, é essencial para combater os sofisticadíssimos e malévolos criminosos, porque, de outra forma, eles passearão, impunes, pelas barbas dos Estados indefesos. Nunca, como hoje, os Estados detiveram tantos e tão poderosos instrumentos, para saberem o que é feito, por quem é feito e quando e como foi feito. A mitologia do Estado fraco tem sido o pretexto para se irem esmagando as prerrogativas individuais de todas e de cada uma das pessoas, desequilibrando, de forma impensável, o balanço que deve existir entre a legítima aspiração à segurança e o valor intocável da reserva individual e da liberdade pessoal. Este será, seguramente, o grande debate do século. Espero que daqui a 30 anos haja mais motivos de celebração.