A FESTA OLÍMPICA
De quatro em quatro anos a festa sobe ao palco. Um palco acerrimamente conquistado numa competição difícil, entre cidades, em que se gasta muito dinheiro. Não só os que ganham, mas também os que perdem. Tudo para a glorificação dos atletas. Mas também para que marcas e patrocinadores façam as contas ao que investiram. E os países contabilizem as medalhas.
De pouco vale a carta olímpica afirmar que os Jogos são uma competição entre atletas, que não entre países. Os Jogos Olímpicos são a melhor competição desportiva à escala mundial para conduzir a uma leitura política dos resultados desportivos. Sempre assim foi. Pelas modalidades que envolvem. Pela mediatização a que estão sujeitos. Pelo carácter planetário que os envolve e contempla. Pierre de Coubertin, o renovador dos Jogos Olímpicos da era moderna, incutiu ao seu empreendimento uma dimensão sagrada. Indo buscar muito do ritual e da liturgia aos jogos da Antiga Grécia, mas aproveitando para popularizar a própria ideia de desporto. Entre aquilo que ele dizia que queria e aquilo que realmente ocorreu, há uma grande diferença. Os tempos são outros e tudo mudou. Os tempos e a vida. Se nos finais do século XIX o desporto era diversão, passou, posteriormente, a estar orientado basicamente para o alto rendimento e a competição organizada, para a afirmação de modelos de tecnicidade cientificamente programada. E no terço final do século XX passou a ser uma prática aberta a todas as pessoas e idades e a todos os estados de condição física e sociocultural.
Adição de valores
À vocação original, o desporto adicionou valores ao serviço das mais distintas finalidades: saúde, recreação e lazer, aptidão e estética corporal, reabilitação e inclusão, entre outras, inscrevendo-se nos estados modernos como um direito do cidadão. Neste contexto a força cultural e social do olimpismo, a sua crescente importância perante povos e países de todo o mundo, tem procurado ser um contributo à divulgação e expansão do desporto. E ao fazê-lo, o ideário olímpico constitui uma oportunidade perante a sociedade globalizada: o de se afirmar como um apoio às grandes causas sociais do desenvolvimento. Mas sobre tudo isso importa não ter grandes ilusões. Porque não se pode pedir ao desporto e ao olimpismo que surja como solução para os problemas do mundo. Ainda que se lhe possa pedir e esperar que, através da força congregadora que mobiliza, aproxime pessoas, povos, países e nações, facilitando o diálogo e a interlocução mundiais. Mas a festa é a festa, e a festa é, neste caso, negócio. Não tanto para quem acolhe, mas sobretudo para quem organiza. Porque o risco é de quem recebe, não de quem visita.
Papel assumido
No quadro do processo de desportivização, o olimpismo assumiu um papel nuclear e de algum modo se pode afirmar que moldou o desporto moderno na sua dimensão competitiva e de espetadorização do desporto1. E nessa dinâmica foram decisivas as relações que estabeleceu com os modernos meios de comunicação de massas num processo de inter-relações em permanente desenvolvimento. Podemos sempre olhar para os Jogos Olímpicos como estipula a carta olímpica: a já referida competição entre atletas de todo o mundo e não uma competição entre países. Mas bastará assistir ao desfile de abertura da cerimónia inaugural para perceber que a festa é outra. Começa muito tempo antes, com as disputas entre as cidades candidatas a sede dos Jogos. As cidades e quem as apoia. E continua com a preparação e realização dos Jogos no cumprimento de um pesado caderno de encargos negociado com o Comité Olímpico Internacional. O resto é conhecido de todos? Não necessariamente. Os resultados e as competições, as estrelas e os casos, os sucessos e as derrotas, sobem à agenda mediática e percorrem mundo. Os bastidores do evento ficam no conhecimento restrito da nomenclatura: um desporto mercantilizado, numa igreja sem ideologias e onde os apóstolos cumprem um pacto de silêncio. Que ninguém lhes pede, mas que todos sabem que devem manter. Porque há coisas que se aprendem, mesmo que ninguém as ensine! As consciências preocupadas têm com que se entreter: o ideal e a filosofia olímpica. E lá encontrarão a paz e a concórdia social como uma tradição do movimento olímpico. A luta por um mundo mais justo e pacífico como uma obrigação que decorre da própria carta olímpica. A obrigação das autoridades olímpicas a que usem de todo o seu capital de influência para aproximar os povos, os governos e as autoridades nacionais e internacionais no encontrar de soluções de paz e de desenvolvimento mais equilibrado. Podem até reconhecer e valorizar a importância que o movimento olímpico assume na sociedade globalizada, ao enfatizar o desporto como matéria de inegáveis potencialidades educativas e, nesse sentido, como um instrumento ao serviço da formação da juventude. Os mais exigentes esperarão que o movimento olímpico use da sua influência mobilizando os cidadãos para a prática do desporto nas suas diferentes modalidades, cenários e molduras organizativas, superando as lógicas biologistas e higienistas que promovem a atividade física como agitação motora sem alma, sem sentido e sem conteúdo. É verdade que o movimento olímpico, na sua génese e história, reúne um capital de conhecimento que pode ajudar, no plano das ideias e das práticas, a revalorizar o sentido formativo que o desporto encerra, ajudando ao mesmo tempo a definir as condições e requisitos para que o aludido sentido seja atingido. Mas o caminho percorrido não está isento de ambivalências e contradições. A afirmação e a mundialização do desporto através do olimpismo têm sido feitas à custa do sacrifício de alguns dos elementos estruturantes da própria ideia e conceito de desporto e de olimpismo. E num contexto em que a sociedade globalizada é atravessada por dinâmicas que conflituam com a perspetiva que o olimpismo em parte reivindica, é enorme a dificuldade para as autoridades olímpicas de aproveitar a função social do movimento olímpico.
Desporto como um novo segmento de atividade económica
A transformação do desporto num novo segmento de atividade económica, a orientação do espetáculo desportivo submetido às leis do mercado, o aproveitamento do desporto como meio de afirmação política e ideológica, suscitou um conjunto de fenómenos que não tem sido possível afastar do movimento olímpico. A procura em encontrar uma resposta global e eficaz, no plano legislativo, aos desafios de carácter transnacional com que o desporto está confrontado perante um quadro de enorme complexidade, não obteve ainda resultados satisfatórios. E interrogam-nos sobre se tudo tem sido feito para combater aqueles flagelos. A festa, os Jogos, são a expressão mais visível do movimento olímpico. Na filosofia original era o modo de internacionalizar o desporto entre a juventude, e deste modo, concorrer para a sua universalização, popularizando-o. Ao fazê-lo, estava a dar-se um contributo inestimável à educação da juventude. O que de algum modo justifica uma revisitação às preocupações de então, que é o mesmo que perguntar que contributo pode dar o olimpismo, nos dias de hoje, à educação desportiva dos jovens. E a resposta não é difícil: dá um contributo lateral, porque a lógia dos tempos atuais está essencialmente virada para a espetacularização do fenómeno olímpico. E com ela a perda de alma do movimento desportivo perante a dinâmica dos interesses financeiros. O que, não sendo uma questão recente, atingiu dimensões novas e mais intensas. Como um dia escreveu Cagigal2, a comercialização do espetáculo desportivo não é perigosa porque atenta contra valores do desporto, mas porque se converteu num produto que necessariamente precisa de ser consumido para ser rentável. O fascínio dos Jogos permanece. O risco não está ausente.