ADRIANO MOREIRA

UMA DERIVA DO ESTADO ESPETÁCULO – Talvez possa indicar-se Hugo Chávez, cuja herança está a reduzir-se ao desastre em curso na Venezuela, como um exemplo da evolução mais inquietante do populismo para o regresso ao “culto do chefe”, que caracteriza o totalitarismo que levou à última guerra mundial. A doutrinação que antecedeu essa catástrofe teve em Carl Schmitt um doutrinador que relembrou a consideração dos imperadores romanos como a lex animata, qualidade que viu reanimada pelo Führer e que o fascismo italiano adotaria. O sovietismo não escapou a essa evolução, que já foi comentada algures como um erro de destinatário da mensagem de Marx, a qual se dirigia ao que os populismos de agora chamam por vezes “o povo real”, e que para ele eram os proletários, mas foi recebida em termos de consagrar o culto de personalidade com expressão física em Estaline, criando, na análise de Claude Lefort, a concentração na pessoa do líder, a que chamou “egocracia” mais a “ideologia”.

Devemos a Jean-Claude Monod (Qu’est-ce qu’un chef en démocratie ?, 2017) ter chamado a atenção com dúvida assumida para, se a nossa época não conta, entre as ameaças e riscos sucessivos, o regresso do culto do Chefe. Talvez a experiência histórica anterior à guerra de 1939-1945 e a dúvida inquieta de Monod tenham raízes na época que se viveu do Estado Espetáculo, que celebrizou Schwartzenberg (1977), o qual analisou as técnicas de propaganda destinadas a implantar, junto da opinião pública, o carisma a caminho do desastre, que antes (1939) Serge Tchakhotine tinha relacionado com as ações adotadas pelos regimes ditatoriais para obter a adesão e obediência das populações.

Os meios de orientar os eleitorados, sem ter que se recorrer às técnicas do Estado Espetáculo, têm demonstrações recentes nos EUA, com a eleição do Presidente em exercício, e no Brasil, que parece desmentir os vaticínios do abade Correia da Serra, e um exemplo no antigo Presidente da Venezuela Hugo Chávez, pessoalmente convencido de ser dotado da lex animata. Não é de esquecer o seu discurso de 17 julho de 2012, com o qual proclamou: “Quando vos vejo, quando me vedes, sinto que qualquer coisa me diz: ‘Chávez, tu já não és Chávez, tu és um povo’. Efetivamente já não sou eu, sou um povo, e sou vós, é o que sinto, encarnei em vós. Vós sois milhões de Chávez.”

O risco assinalado, e que começa a ser visto como um traço comum dos múltiplos populismos, é o de, ainda que formalmente exibindo traços de imagem democrática, conseguir pelo domínio da formação da opinião pública, e até pela articulação de coligações plurais, fora do sistema, implantar a linha vermelha entre, como vai sendo dito, o bem e o mal, o natural e o migrante, o patriota e o traidor, o religiosamente fiel e o infiel, os geneticamente diferentes, o “povo autêntico” contra a elite dominadora do Estado extrativo. A própria Europa é chamada pelo facto a verificar a solidez da sua estrutura.