ALEXANDRE MESTRE

A UNIÃO EUROPEIA, O VINHO E A SAÚDE

O rótulo de um vinho é a sua cara, a sua imagem, o seu bilhete de identidade. Como falamos de “apresentação” do vinho, há quem considere o rótulo, em conjunto com a cápsula, a toilette da garrafa.

O primeiro contacto que temos com o vinho faz-se pelo rótulo, enquanto elemento de identificação e marketing do produto – ali se encontra o principal local autorizado para a publicidade do produto. E, claro, é no rótulo que encontramos as informações úteis sobre as características técnicas do vinho, ou seja, se o rótulo nos seduz, também nos informa e educa. Da utilidade do rótulo de um vinho ninguém duvida: enquanto consumidores somos informados e prevenidos – para nós se transfere a responsabilidade de escolher, de forma livre e informada, qual a garrafa que vamos comprar. Por outro lado, e para além da decisão baseada nas informações úteis sobre as características do produto, a rotulagem permite outras coisas, designadamente identificar o responsável em vista de controlos futuros; lutar contra o vinho artificial, de origem falsa, bem como demais fraudes qualitativas e quantitativas; ou lutar contra a existência de produtos perigosos inseridos no “néctar dos deuses”.

 

Surgimento do rótulo

E de há muito que assim é: se é verdade que apenas no final do século XVIII surgiu o primeiro rótulo em papel – com o fabrico quase industrial das garrafas e o advento da litografia –, certo também é que já na XVII dinastia egípcia se encontram nas ânforas algumas menções, tais como a variedade da vinha, a designação do terroir, o ano da colheita e o nome dos proprietários. Por conseguinte, pode dizer-se que comercialização/circulação do vinho e sua rotulagem são indissociáveis: esta é um pressuposto daquelas. Sucede, porém, que, como se diz na gíria popular, muitas vezes se tende a “passar do 8 para o 80”, sobretudo, mas não só, em face da regulamentação, vertical e horizontal, emanada da União Europeia.

 

Regulamentação na União Europeia

Desde logo, há um conjunto de indicações obrigatórias a constar de um rótulo. Por isso, no rótulo encontramos a marca do vinho; a designação do vinho (por exemplo “vinho” ou “vinho frisante”); o volume nominal da garrafa (sim, 75 cl…); o número de lote; a categoria do produto vitivinícola; ou a indicação do engarrafador/produtor/vendedor/importador. E por isso, também, e agora por razões de saúde pública, o rótulo tem de indicar o “título alcoolométrico adquirido” (12,5%, 15%, 17%…); menções de saúde/indicação de alergénicos (por exemplo “contém sulfitos”) e indicação do teor de açúcar em caso de vinhos espumantes. Como se não bastasse, há ainda as menções facultativas, que reforçam o prestígio do vinho ou que fazem recomendações ao consumidor, designadamente conselhos de harmonização com a comida, temperatura de serviço, ou perspetiva de guarda. Depois, se o vinho é biológico, desde 2012 que tal pode figurar no rótulo… E há ainda os autocolantes com as medalhas alusivas ao concurso X e ao prémio Y. Ou o selo de qualidade. Ou, nalguns países – também aqui por razões de saúde pública –, o pictograma da silhueta de uma mulher grávida, com um copo na boca, barrado por uma marca de proibição. Uff! Quase que já não sobra espaço, quer no rótulo, quer no contrarrótulo, sendo que este último nem acolhimento tem na lei. Por isso João Paulo Ramos sublinha: “verdade que não há normas que imponham o que lá dizer e por isso cada um escreve o que melhor entende”. E acrescenta ainda: “muitas vezes a informação é inútil, outras, excessiva”. Já Luís Lopes confessa: “leio todos os contrarrótulos que apanho, sobretudo porque me deleito imenso com a total inutilidade da grande maioria da informação apresentada”. Ora, como costuma dizer-se, muita informação mata a informação, pelo que corre-se o risco de o cidadão comum deixar de ler os rótulos – aliás, a ASAE deixou a entender isso, recentemente, aquando de megaoperações de apreensão de garrafas com rótulos falsificados.

 

Iniciativa legislativa

Ora, é neste quadro de muita informação e de rótulos quase ilegíveis que se discute, no âmbito da União Europeia, uma iniciativa legislativa tendente a alargar as menções obrigatórias, impondo que no rótulo das bebidas alcoólicas (vinho, cerveja e bebidas espirituosas) passe a constar a indicação do teor calórico da bebida – no fundo, para calcularmos quantas quilocalorias terá um copo de vinho, à imagem e semelhança do que acontece com os géneros alimentícios. Numa clara dimensão prescritiva, de proteção da saúde, pretende-se acabar com a derrogação parcial de que beneficia o setor das bebidas alcoólicas, em particular o vinho. Tudo isto ao mesmo tempo que chegam ecos da Irlanda – país que pretende inserir no rótulo a menção de que o vinho causa cancro – ou da Escócia – de onde emerge um contencioso em torno da medida legislativa, adotada também por razões de saúde pública, que consiste na introdução de um preço mínimo por cada unidade de álcool e, em consequência, na fixação de um preço mínimo de venda de cada garrafa de vinho. A luta contra o chamado binge drinking, a par de um amplo combate à obesidade crescente, nomeadamente no Norte da Europa, conduz-nos a uma postura da União Europeia de controlo do consumo do álcool numa postura semelhante à do controlo do tabaco e das drogas. Numa lógica higienista ou, mais ampla, de proteção da saúde pública – sempre invocando o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais –, o caminho estreita-se para o setor vitivinícola: qualquer dia o consumidor terá medo de brindar com um copo de vinho.

 

Mais saúde

Que há um interesse legítimo na medida – a proteção da saúde humana –, tal afigura-se indiscutível. Mas que seja uma medida necessária e proporcional ao objetivo fixado (lembrando até o Acórdão Cassis de Dijon, sobre a livre circulação de bebidas alcoólicas), já tenho algumas dúvidas. Sou muito mais defensor de uma lógica em que prevaleça a informação e a educação como fatores de responsabilização do consumidor – acho mais adequado, razoável e com hipóteses de sucesso educar o cidadão, desde jovem, a consumir bebidas alcoólicas com moderação, de forma racional, da escola a campanhas de sensibilização pelas autoridades competentes. Acredito muito mais na proteção dos consumidores assente no direito à informação. Não olho tanto para o consumidor como alguém muito vulnerável, vejo-o mais como alguém a quem se deve dar os instrumentos para, de forma soberana, escolher, decidir, e não creio que o somar de exemplos de alegado prejuízo para a saúde pública, de que esta questão calórica é um fator da soma, seja a melhor via: a “informação exaustiva” – para utilizar uma expressão de um dos regulamentos da UE em vigor – não é necessariamente a melhor via para combater “os riscos do álcool”. Estou ainda convicto de que não se vai lá criando o medo, até pelo que se assiste no plano da luta contra a obesidade, do tabagismo, do consumo de drogas e até do jogo, em que as proibições não têm necessariamente garantido um menor consumo de produtos/serviços prejudiciais à saúde. Compreendo quando o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que a saúde pública deve prevalecer sobre a liberdade profissional e sobre a liberdade de empresa. Concedo também quando o mesmo tribunal, na lógica de não haver qualquer sugestão de que o vinho faz bem à saúde (ainda que haja cientistas que sustentem o contrário…), decidiu que um rótulo vínico não pode ter a expressão “acidez suave/digestível”. Mas já me afasto, todavia, de uma lógica que está a querer vingar, que defende que dos rótulos dos vinhos devem desaparecer os motivos ou nomes com conotação festiva ou a ideia de que o vinho possa gerar bem-estar. Querem que o consumidor se sinta culpado de beber vinho, não haja dúvidas… Mais: tal como legislativa e jurisprudencialmente está assente, o vinho não é um verdadeiro género alimentício. Ora aplicar ao vinho a lógica dos alimentos pode ter um efeito paradoxal no consumidor, confundindo-o. Vejamos no que isto dá. Mas caso acabe por ser aprovada a legislação em apreço, ao menos que, tal e qual com o título alcoolométrico adquirido, se preveja um valor aproximado de calorias, com uma margem, sob pena de os produtores de vinho – que gastam no engarrafamento e na rotulagem muito tempo e dinheiro – terem de mudar os rótulos, consoante as variações energéticas anuais, implicando mesmo a retirada de muitas garrafas do mercado… Bom senso precisa-se.